O sujeito histórico Custódio Joaquim de Almeida (?-1935), o Príncipe Custódio, carrega em sua biografia uma série de lacunas fruto de uma gama de questões ainda não respondidas. Confirmações? Apenas o consenso de ter falecido em Porto Alegre em 1935 e de ter nascido no Continente Africano no século XIX.
No entanto, as versões que procuram jogar luz a lugares de sombra da vida deste personagem complexo, coincidem sobre a importância do lugar assegurado a Custódio no imaginário da comunidade negra de Porto Alegre de mito político e afro-religioso.
A narrativa até há bem pouco tempo dominante, da antropóloga Maria Helena Nunes da Silva, diz ser Custódio nominado em sua terra natal Osuanlele Okizi Erupê, nascido em 1831, filho primogênito do Obá (rei) Ovonramwen, do Benin, país que o príncipe deixou na segunda metade do século XIX, por questões políticas relacionadas à invasão dos ingleses em seus domínios.
Os supostos laços de sangue de Custódio com a família real do Benin conferem uma aura de nobreza às práticas religiosas afro-brasileiras na capital, em especial o batuque, e demarca a importância simbólica do assentamento ao Bará do Mercado, atribuído ao príncipe por parte do grupo social de babalorixás e yalorixás.
Em entrevistas (VARGAS, 2017, p. 154-155) relacionadas às origens do assentamento dedicado ao Bará no Mercado Central, sacerdotes associam o papel político do Príncipe à sua influência religiosa. O descrevem como um negro africano politicamente bem articulado, com contatos na elite local, aliado a seu papel como um grande líder dos cultos africanos. Ao relatar que o assentamento no Mercado não é o único na cidade, mas sim o mais importante, discorrem sobre o papel de liderança de Custódio junto com outros pais e mães de santo das primeiras décadas do século XX no assentamento de outros axés do Bará na Colônia Africana, Cidade Baixa e Bacia do Montserrat. Ou seja, por meio da atuação de Custódio, é possível mapear os territórios e a sociabilidade negra na primeira metade do século passado.
Por outro lado, a pesquisa documental empreendida por Jovani Scherer e Rodrigo Weimer afasta a origem de Custódio de uma família reinante da África. Os autores de forma inédita veem Custódio, por esta versão, nascido em 1852/1853, como um dos filhos mais jovens de Manoel Custódio de Almeida, um retornado (ex-escravizado que volta ao continente africano) que vai se destacar como importante comerciante de escravos em sua terra natal.
Sem se saber exatamente como nosso personagem chega a Porto Alegre, sua saída da África é atribuída à morte por envenenamento de seu pai e às brigas que se sucederam por seu espólio. A primeira vez que os pesquisadores localizam o nome de Custódio Joaquim de Almeida portador da alcunha de “Príncipe” é em um processo crime de 1885, em que está envolvido em uma briga de bar, onde declara ser africano e ter 32 anos.
A partir deste ponto os historiadores vão traçar uma rota procurando estabelecer um mapa da vida do Príncipe. Por meio de reclames e postagens em jornais percebem que Custódio, a princípio um "turfman” que mantinha uma coudelaria de cavalos em sua casa, vai ganhando notoriedade na sociedade porto-alegrense, a partir do início do século XX, não apenas pelas corridas de cavalo, que com certeza o ajudaram a enlaçar vínculos com a elite da capital, mas principalmente por sua atuação no campo religioso, lugar de onde lhe era atribuído poder de cura. Nesse ponto pode-se pensar em um breve encontro entre os trabalhos de Maria Helena N. da Silva (1999) e o de Scherer e Weimer (2021). Os últimos, ao revisarem a produção de vários estudiosos, citam a influência do Príncipe nas casas de linha Jêje e o possível conhecimento de Custódio sobre o culto Sapatá ou Xapanã (para Maria Helena), orixá dono da saúde e da doença, o que mostraria seu o vínculo com Daomé, região onde situava-se Ajudá.
O que os historiadores Jovani Scherer e Rodrigo Weimer apontam sobre o Príncipe, é que sua nobreza dizia respeito aos pobres da cidade e levou anos para ser construída. Custódio era um Príncipe do povo, onde exercia seu poderio, com base na autoridade religiosa, no domínio sobre a linguagem mágica, na generosidade do acolhimento de pessoas necessitadas, na cura e na mediação com a elite política.
Embora envolto em algumas brumas, o interesse cada vez mais vivo pela sua biografia, com certeza, irá dissipar. Contudo, o espaço ocupado pelo Príncipe Custódio como referência para o empoderamento negro no RS, como atesta o vigoroso movimento das instituições do povo negro, vai continuar pautando discussões no campo político e religioso.
Referências:
VARGAS, Pedro Rubens. A Relação Patrimonial na Restauração de Bens Culturais: o mercado de Porto Alegre e os caminhos invisíveis do negro. Curitiba: Editora Appris, 2017.
SILVA, Maria Helena Nunes. O Príncipe Custódio e a Religião Afro-Gaúcha. 1999. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999.
WEIMER, Rodrigo de A.; SCHERER, Jovani. No Refluxo dos Retornados: Custódio Joaquim de Almeida, o príncipe africano de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS, 2021.
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