Projeto realizado com recursos da Lei Complementar nº 195/2022. O Ministério da Cultura e a Secretaria da Cultura do Estado do RS apresentam Memórias Negras em Verbetes: Inventário Participativo de Referências Espaciais, Sociais e Simbólicas
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- Oliveira Silveira
O liveira Ferreira da Silveira nasceu em Rosário do Sul (RS), no distrito de Touro-Passo, na Serra do Caverá, em 16 de agosto de 1941. O mundo da poesia apresentou-se a Oliveira Silveira ainda na infância, por meio de causos, poemas e versos entoados nas rodas de chimarrão nos galpões da campanha gaúcha, herdado da mãe e dos tios dedicados à música. Já em torno dos anos 50, seu talento foi revelado na forma de poesia regional, disseminada pelo jovem poeta no jornal e na emissora de rádio de sua cidade natal. Aos 18 anos, juntamente com um grupo de amigos, deixava os pais, os cinco irmãos e as lembranças da comunidade negra do Rincão dos Ferreira, em Rosário do Sul, para tentar a vida em Porto Alegre. Ingressou e foi estudante do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, para cursar o ginásio, entre 1959 e 1961, quando fez o Clássico e tendo sido eleito Secretário de Imprensa e Divulgação do Grêmio Estudantil. No Jornal “Julinho” publicou alguns de seus poemas. Diplomado em Letras – português e francês (Ufrgs), onde iniciou seus estudos literários, em 1962, entrou em contato com a obra de Aimé Césaire (1913-2008), Léopold Senghor (1906-2001), René Depestre (1926-), Langston Hughes (1901 – 1967), León-Gontran Lamas (1912-1978) e outros pensadores negros. Numa ocasião, Oliveira Silveira afirmou o seguinte: “Vivi a literatura, eu lia e escrevia. Eu procurei a Lara Lemos [escritora e professora gaúcha], foi professora no Julinho [Colégio Estadual Júlio de Castilhos], mas não a conhecia. Ela convidou-me para ir a sua residência e me deu o livro “Reflexões Sobre o Racismo”, de Jean-Paul Sartre, no qual tinha a parte do Orfeu Negro, onde ele fez análise da poesia malgaxe, um comentário sobre a poesia de Leopoldo Senghor [1906-2001]”. De acordo com o poeta Oliveira Silveira, surgiu ali “a oportunidade de intercâmbio com muitos poetas”. Durante esse período, quando era estudante universitário, Oliveira aliou à militância contra a ditadura militar sua consciência racial, vindo a produzir seus primeiros poemas e começar sua atuação política pela causa negra, enormemente motivada pela poesia. Para o poeta, contudo, “a militância mesmo veio depois de graduado no final da década de 1960”. Existiam em Porto Alegre de fins do século XIX várias instituições ligadas ao associativismo negro: a Sociedade Floresta Aurora (1872), o jornal O Exemplo (1892), a Associação Satélite Prontidão (1904) e outras entidades como o Clube Náutico Marcílio Dias, a Sociedade Nós Os Democratas, a Fica Ahi Pra I Dizendo e a Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio, em Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria. Contudo, a juventude negra da geração de Oliveira Silveira estava distante dos antigos intelectuais fundadores e, ao mesmo tempo, entrava em contato com as estéticas artísticas, poéticas e da linguagem teatral que traziam referências da negritude francófona e que reagiam aos impactos dos debates e lutas de independência no continente africano. Oliveira Silveira, por esta época, também lecionou Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio, na Escola Cândido de Godoy, em Porto Alegre. Aposentado do magistério, continuou participando de publicações coletivas, artigos jornalísticos, palestras e encontros com autores e estudantes. O escritor estabeleceu-se em Porto Alegre, em 1959, vindo a morar na Pensão Pelotense, na Rua Lima e Silva, depois, numa residência da JUC (Juventude Universitária Católica), e depois numa pensão, muito próxima do clube negro Floresta Aurora. O escritor Silveira manteve sempre contato com o universo artístico-cultural da literatura afro-brasileira, sobretudo com o grupo Quilombhoje, de São Paulo, tendo participado de diversas edições do Cadernos Negros e de outras antologias organizadas por membros deste grupo, entre os quais estão Miriam Alves, Éle Semog, Paulo Colina, Geni Guimarães, José Carlos Rivera, Esmeralda Ribeiro, Oswaldo de Camargo, Jônatas Conceição, Cuti e outro(a)s. Acompanhou com interesse o desenrolar da poesia afro-brasileira, tendo escrito sobre a obra do poeta de Juiz de Fora, Edimilson de Almeida Pereira, o que gerou o artigo intitulado “De repente um poeta madura nas Gerais”. Escreveu também sobre Luiz Gama e Oswaldo de Camargo, entre outros. Trabalhou na tradução parcial ou em progressão de Cahier d’um retour au pays natal , de Aimé Césaire, embora nunca tenha chegado a publicá-la. De acordo com Oliveira Silveira, durante o período acadêmico, “...estava ligado na política estudantil. O poeta Oliveira Silveira fundou e integrou o Grupo Palmares, no final da década de 1960 e início da década de 1971, quando assinalou pela primeira vez a data, realizando ato em homenagem ao Estado Negro dos Palmares, assim propondo uma alternativa para as infundadas comemorações do dia 13 de maio, data alusiva à Abolição da Escravidão. Anteriormente, as propostas começaram, inicialmente, dos encontros informais na Rua dos Andradas (Rua da Praia), esquina com a Rua Mal. Floriano, no centro de Porto Alegre, congregando estudantes negros universitários de várias áreas. Nos debates, surgiu uma série de questionamentos sobre o “treze-de-maio”, considerada a farsa da abolição. Em seguida, foram criadas então uma série de estudos sobre a história de Palmares, e o próprio grupo ali formado adotaria esse nome. Os textos e escritos de Zumbi, fascículo da Editora Abril na série Grandes Personagens da Nossa História, além de pesquisas de Edison Carneiro (1912-1972) e de Ernesto Ennes (1881-1957), passaram a circular entre os participantes. A primeira reunião de fundação do Grupo Palmares ocorreu na rua Tomás Flores, 303, no bairro Bom Fim, quando, na data de 20 de julho de 1971, foi proposta a criação do grupo e a celebração da morte de Zumbi: 20 de novembro. Oliveira teve o cuidado de registrar os nomes de outros participantes: José Maria Viana Rodrigues (1918-1970), Maria Araci Rodrigues, Jovelina Godói Santana, Julieta Maria Rodrigues e sua filha Naiara Rodrigues Silveira. Depois, se juntariam ao grupo Antônio Carlos Côrtes e Ilmo da Silva. Entretanto, para o poeta, um dos maiores contestadores do 13 de maio era um “preto alto chamado Jorge Santos ou dos Santos, ator nato, não burilado. Mas ele não foi a reunião inicial e nem integrou-se ao grupo”. Os iniciadores, de fato, do Grupo Palmares, em 20 de julho de 1971, foram Antônio Carlos Côrtes, Ilmo Silva, Oliveira Silveira e Vilmar Nunes. Depois foram chegando as negras universitárias Anita Leocádia Prestes Abad, Helena Vitória dos Santos, Marisa Souza da Silva e Nara Helena Medeiros Soares (falecida). Ainda naquele ano de 1971, contrariando outras propostas que pretendiam destacar os nomes de Luiz Gama (1830-1882), José do Patrocínio (1853-1905) – sempre lembrados nas atividades da Sociedade Floresta Aurora -, o Clube Náutico Marcílio Dias foi escolhido como o local em que o grupo homenagearia Zumbi dos Palmares (1655-1695). A sugestão de “evocar Vinte de Novembro” foi uma proposta de Oliveira Silveira, que lembrou das analogias feitas com Tiradentes (1746-1792), o qual depois de participar da Inconfidência Mineira de 1789, acabou enforcado em 1792, transformado então em símbolo republicano a partir de 1870 e consagrado como herói nacional no fim do século XIX e início do século XX. As mulheres integrantes do Grupo Palmares, também participaram do primeiro ato evocativo do 20 de Novembro, no clube negro Clube Náutico Marcílio Dias. Na primeira comemoração pública do Vinte de Novembro, quem compareceu e “assistiu anonimamente” ao ato foi o historiador Décio Freitas (1922-2004) – cujo livro Palmares: La guerrilla negra , publicado em Montevidéu em agosto de 1971, acabara de sair, mas era ainda pouco conhecido no Brasil. Em sua memória, Silveira destaca que Décio Freitas ofertou-lhe o livro discretamente, ao final do ato. A ideia, portanto, não havia sido do historiador. Em 1977, Oliveira Silveira também estava entre os militantes do Movimento Negro que propunham a data de 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, que alcançou posteriormente repercussão nacional, vindo o MNUCDR (Movimento Negro contra a Discriminação Racial) a ratificar a referida data em 1978. Nessa altura, também havia o enfrentamento à Ditadura Militar e, por esta razão, foram inviabilizadas manifestações de toda ordem, inclusive as de cunho racial. Oliveira Silveira integrou-se perfeitamente à corrente formada pelos poetas afrodescendentes engajados na valorização do negro e de sua cultura, distinguindo-se dos demais, porém, pela busca simultânea de uma identidade negra e gaúcha. Em sua poesia inscrevem-se o manancial do falar gauchesco e quadro referencial do pampa, aos quais vêm associar-se elementos da presença negra – ocultados pela historiografia oficial no Sul do país. Desta forma, seus poemas afro-gaúchos apresentam aspectos poucos conhecidos da história no Rio Grande do Sul, como a existência de todas as formas de numerosos quilombos, além de sua participação efetiva em diversas revoluções. O resgate de lendas do Sul do país, como a do Negrinho do Pastoreio e a do Negro Bonifácio, e sua reelaboração poética a partir de uma ótica negra, colocam Oliveira Silveira entre as figuras de primeira grandeza no panorama da poesia afro-brasileira. Nos anos subsequentes houve mudanças na composição do Grupo Palmares, com a entrada, entre outros, de Helena Vitória dos Santos Machado (1943-) e depois Marisa Souza da Silva. Segundo Oliveira Silveira, elas “foram integrantes cuja participação contribuiu decisivamente para o ajuste do trabalho ao contexto das lutas sociais”. E o Grupo Palmares continuaria promovendo, entre 1972 e 1977, debates, encontros, reuniões, exposições e comemorações em torno do Vinte de Novembro. Uma Mini-História do Negro Brasileiro foi lançada por eles em 1976. As atividades do Grupo Palmares foram paralisadas em 1978 devido a “divergências internas”, só retornando em 1980, já com a criação do “grupo de trabalho – GT Palmares do MNU”, uma articulação política com o MNUCDR (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial), criado em junho de 1978, em São Paulo. Mas, antes disso, o 20 de Novembro começaria a ser invocado por intelectuais e entidades em várias partes do Brasil, como o Grupo Teatro Evolução de Campinas (SP) e o Centro de Cultura Negra (Cecan). Em Salvador, no mês de novembro de 1978, foi a expressão “Dia Nacional da Consciência Negra”, uma sugestão do militante e intelectual negro carioca Paulo Roberto dos Santos. Como escritor, Oliveira publicou, até 2005, dez títulos individuais de poesia –Pelo Escuro, Roteiro dos Tantãs, Poema Sobre Palmares, entre outros, além de participar de inúmeras antologias, coletâneas, jornais e revistas no país e no exterior, entre estes Cadernos Negros, do grupo Quilombhoje; Razão da Chama, organizado por Oswaldo de Camargo, São Paulo; Quilombo de Palavras, organizado por Jônatas Conceição e Lindinalva Barbosa, em Salvador, BA; Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira, organizado por Paulo Colina, São Paulo, SP; Schwarze poesia/Poesia Negra e Schwarze proza/Prosa negra, organizada por Moema Parente Augel, editada na Alemanha por Étidion diá, em 1988 e 1993, com tradução de Johannes Augel; Revista Callaloo, vol. 18, número 04, 1995; e volume 20, nº 01 (estudo de Steven F. White), 1997, Virgínia, Estados Unidos. Na imprensa, publicou artigos, reportagens, contos e crônicas, entre os quais “Criação Crioula, Nu Elefante Branco”, publicação da Comissão Nacional do I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros, Setembro de 1985, São Paulo, SP, editado em 1987, com o artigo, “A produção literária negra (1975-1985)”. O escritor Oliveira Silveira participou com artigos e ensaios em obras coletivas, a exemplo do ensaio “Vinte de Novembro: história e conteúdo”, no livro Educação e Ações Afirmativas, organizado pela Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Válter Roberto Silvério, Ministério da Educação/Inep, Brasília, DF, em 2002. Entre algumas distinções recebidas registramos as seguintes: Menção Honrosa da União Brasileira de Escritores, RJ, pelos originais do livro “Banzo, Saudade Negra”, em 1969; Medalha da cidade de Porto Alegre, concedida pelo executivo municipal, em 1988; Medalha Mérito Cruz e Souza, da Comissão Estadual para a Celebração do Centenário da Morte e Cruz e Souza, Florianópolis, SC, em 1998; Troféu Zumbi, obra do artista plástico negro Américo Souza, concedido pelo clube social negro Associação Satélite Prontidão, em 1999; Comenda Resistência Escrava Anastácia, evento cultural “Rua do Perdão”, Porto Alegre, RS; “Tesouro Vivo Afro-Brasileiro”, homenagem do II Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, Copene, entre 25 a 29 de agosto de 2002, Universidade de São Carlos, São Carlos, SP. O escritor e poeta Oliveira atuou em diversos grupos culturais, a contar de meados da década de 70, do século XX, tais como: Razão Negra, Revista Tição, Semba Arte Negra, Boletim Eletrônico Negraldeia, Comissão Gaúcha de Folclore, Conselheiro no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial – CNPIR, órgão consultivo, entre 2002-2007, no primeiro mandato da ministra Matilde Ribeiro. Efetuou diversos exercícios em textos teatrais e paradidáticos (cenas, montagens simples) e música popularesca e teve seus poemas musicados por Haroldo Mais, Wado Barcelos, Airton Pimentel, Luiz Wagner, Marco de Farias, Paulo Romeu, Flávio Oliveira, Vera Lopes, Nina Fola e Lessandro. Na Suécia, pela compositora Tebogo Monnakgotla. A recuperação real da importância do negro na formação da história sulina ganhou maior interesse por corresponder à tentativa de recompor um equilíbrio perdido, pois se a história do negro no Norte e no Nordeste do país é cheia de lacunas, ela o é ainda mais no que diz respeito à realidade gaúcha, onde se pretendeu criar o mito da inexistência de formas de resistência negra. Os versos que procuram iluminar os desvãos da história e urdir a epicidade do negro no extremo Sul do Brasil emergem com redobrado vigor porque a voz do poeta soma-se à do povo que pretende reavaliar. Esta fase afro-gaúcha de sua obra é desenvolvida principalmente nas seguintes publicações: Décima do negro peão (1974); Poemas regionais (1968) e Pêlo Escuro (1968-1977). O viés épico, presente na obra de Oliveira Silveira, emerge para louvar a ação transgressora de Zumbi dos Palmares. A exemplo de Solano Trindade, que também compôs um poema para resgatar a epopeia palmarina, Oliveira busca contornos épicos em poema sobre Palmares (1972-1987), louvando ao mesmo tempo o território-símbolo da liberdade como seu líder maior. Os repetidos ataques ao maior de todos os quilombos são referidos, enaltecendo-se a bravura dos quilombolas que resistiram durante anos. É como se o poeta quisesse mostrar a seus contemporâneos o exemplo a ser seguido nos dias de hoje, quando os ataques representados nas atitudes racistas dos brancos ainda são constantes. Uma leitura possível do poema: o sangue de Zumbi não foi derramado em vão: foi o húmus onde germinou a semente de inúmeras rebeliões escravas que brotaram mais tarde, como a Guerra dos Malês, Cabanagem, Balaiada, além dos quilombos espalhados por todo o Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul. “Palmares não é um só, são milhares”, ensina o poeta. A concepção identitária de Oliveira Silveira tende ao enraizamento, a construção de um tipo de identidade voltada sobre a própria comunidade negra, nem sempre predispondo-se à salutar abertura ao outro, à diversidade e à relação. Sua concepção de literatura negra, muitas vezes referida oralmente em congressos e seminários, não mudou ao longo dos anos, permanecendo à pertença à etnia negra. Para Oliveira Silveira, a literatura negra é aquela feita por negros, o que constitui – a nosso ver – um critério epidérmico/racial que está na contramão de vertentes profícuas de poesia negra como a caribenha, por exemplo, para as quais os essencialismos da Negritude, fundada tão somente na preservação dos ‘valores negros’ e restringindo o alcance universal da poesia, são coisa do passado. No entanto, sua contribuição à assim chamada poesia negra brasileira, ou afro-brasileira, ou ainda afrodescendente, como vem sendo chamada atualmente, é de grande vigor e originalidade ao vincular a comunidade negra à ‘gauchidade”, obrigando de certa forma as manifestações identitárias a adquirirem um viés heterogêneo. Para o poeta e crítico literário Ronald Augusto, Oliveira Silveira “... além de estar atento às questões históricas e sociais dos afro-brasileiros, também respondeu crítica e criativamente ao seu tempo-espaço porque não descurou quer das relações relativas à tradição poética (diacronia), quer das relativas à função poética (sincronia)”. Seus livros foram editados na capital gaúcha e em tiragem limitada. São, portanto, dificilmente encontráveis, estando a merecer uma edição atualizada reagrupando o conjunto da produção poética do autor. Esforço nesse sentido foi levado a cabo com a publicação, em fins de 2009, de antologia poemas, com seleção e prefácio de Oswaldo de Camargo. Em sua homenagem e reconhecimento da sua obra literária e intelectual, a Biblioteca da Fundação Cultural Palmares recebeu o nome de “Oliveira Silveira”; a Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, a “Sala Oliveira Silveira” ampliou seu espaço, o qual passou a ser designado de “Espaço Oliveira Silveira”, onde se mantém uma exposição permanente. No município de Osório, Litoral Norte do RS, foi inaugurada a Biblioteca Municipal Oliveira Silveira, no dia 13 de novembro de 2015, onde está parte do acervo contendo obras do poeta, autores negros (literatura afro-brasileira), literatura brasileira e sobre o movimento social negro, autores africanos e negros norte-americanos. O poeta e escritor Oliveira Silveira faleceu em Porto Alegre, no dia 1º de janeiro de 2009, já consagrado em termos literários e considerado “O Poeta da Consciência Negra”. BIBLIOGRAFIA DE OLIVEIRA SILVEIRA: Germinou : poemas, Edição do Autor, Porto Alegre, 1962. Poemas Regionais , Edição do Autor, Porto Alegre, 1968. Banzo, Saudade negra : poemas, Edição do Autor, Porto Alegre, 1970. Décima do Negro Peão , Edição do Autor, Porto Alegre, 1974. Praça da Palavra , poemas, Porto Alegre, 1976. Pêlo Escuro : poemas afro-gaúchos, Edição do Autor, Porto Alegre, 1977. Roteiro dos tantãs : Porto Alegre, Edição do Autor, 1981. Poema sobre Palmares , Edição do Autor, Porto Alegre, 1987. Anotações à margem. Porto Alegre, SMC, Coordenação do Livro e Literatura, Unidade Editorial Porto Alegre, 1994. (série Petit POA). Orixás: pintura e poesia . Porto Alegre: SMC, Coordenação do Livro e Literatura, Unidade Editorial, Porto Alegre [1995]. Ilustrações a partir de pinturas do artista plástico negro Pedro Homero. Bandoné do Caverá . Porto Alegre. Edição do Autor, 2008. Poemas: Antologia , Porto Alegre, Edição dos Vinte, 2009. Antologia Poética de Oliveira Silveira , obra completa de poesia. Rosário do Sul. VCS,2010. Oliveira Silveira – Obra Reunida, AUGUSTO, Ronald (Org. ) Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, RS, 2012. PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS E COLETÂNEAS Cadernos Negros 3 – poesia, São Paulo, Ed. Do Autor, 1980. Axé – Antologia contemporânea da poesia negra brasileira (org.) Paulo Colina, São Paulo, Global Editora, 1982. Cadernos Literários 19 – Poetas Negros do Brasil, Porto Alegre, Instituto Cultural Português, Edições Caravelas, 1983. A Razão da Chama – Antologias de Poetas Negros Brasileiros (coordenação e seleção de Oswaldo de Camargo, São Paulo, GRD, 1986. O Negro Escrito – Apontamento sobre a presença do Negro na Literatura – Antologia Temática – São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura/Assessoria de Cultura Afro-Brasileira, 1987. Cadernos Negros 11 – Poemas, São Paulo, ED. dos Autores, 1986. Schwarze Poesia/Poesia Negra (Org. Moema Parente Augel), tradução de Johannes Augel, St. Gallen/Köln, Edition Diá, 1988. Poesia Negra Brasileira: Antologia (org. Zilá Bernd), Porto Alegre, AGE/IEL/IGEL, 1992 FICÇÃO – CONTO Zumbi in der Favela (Zumbi no Morro), in Schwarze Prosa/Prosa Negra (Org. Moema Parente Augel); tradução Johannes Augel), St. Gallen/Berlin/, São Paulo, 1993. OUTROS Rosário Centenário – História, Atualidades e Perspectivas (Coordenação de Oliveira Silveira), Rosário do Sul, Prefeitura Municipal, 1976. Mini-História do Negro Brasileiro – Uma Síntese (co-autoria: Anita Leocádia Prestes Abad et al.), Porto Alegre, SMEC, 1986. A Produção Literária Negra (1975 – 1985) – Ensaio, In: Criação Crioula nu Elefante Branco (Organização da Comissão Nacional do 1º Encontro de Poetas Ficcionistas Negros Brasileiros), São Paulo, Governo do Estado, 1987. Nós, Os Negros (ensaio) In: Nós, Os Gaúchos (Coordenação de Sergius Gonzaga e Luís Augusto Fischer), Porto Alegre, Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1992, (2ª ed. , 1993). Nós, os Afro-Gaúchos (participação com poemas (Coordenação de Euzébio Assumpção e Mário Maestri) Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1986. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGUSTO, Ronald (Org. ) Oliveira Silveira – Obra Reunida, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, RS, 2012. BERND, Zilá. Oliveira Silveira. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.) Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica, Volume 2, Consolidação, Editora Ufmg, Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2011. BOEIRA, Eloísa Elena Prates. Pêlo Escuro: a poesia afro-brasileira de Oliveira Silveira. PPG em Estudos da Linguagem, Mestrado em Literatura Comparada, CCHLA, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2013. CADERNOS DA EXPOSIÇÃO DO MARS (Museu Antropológico do Rio Grande do Sul), “Palmares não é só um, são milhares: 50 anos do 20 de novembro” (Org. Mônica Wiggers, Juliana koenig e Alice Silveira, MARS, IEL, Porto Alegre, 2022. FiLiGram, Feira do Livro de Gramado, Gramado, RS, 2022. GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra, Companhia das Letras, SP, 2021. Revista Eparrei. Casa de Cultura da Mulher Negra, 1º semestre, nº 6, Ano III, 1º Semestre, Santos, SP, 2004. SILVA, Jônatas Conceição da Silva. Vozes Quilombolas – uma poética brasileira, Edufba, Ylê Aiyê, Salvador, 2004.
- Painel afro-brasileiro
I naugurado em 20 de novembro de 2014, o Painel Afro-brasileiro é a quarta obra registrada no circuito do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. Esta obra é, sem dúvidas, um instrumento poderoso de evocação de memórias. O painel cerâmico multicolorido foi montado como se fosse uma moldura no muro do Chalé da Praça XV de Novembro, quase em frente ao Mercado Público, e chama atenção pela sua força imagética e pela presença negra perene no território originário da formação da capital gaúcha. O local onde está instalado, uma releitura de uma esquina do tempo, é uma reafirmação de um espírito do lugar: agrega edificações do século XIX com intervenções urbanas contemporâneas, mas mantendo a característica de ser ponto de grande circulação de pessoas e de manifestações sociais e políticas. É desse lugar que o painel grita “sempre estivemos aqui”, um sopro contra a invisibilidade da população negra na história da cidade. A concepção desta obra, no entanto, se inicia em 2009, com a produção dos primeiros desenhos e ensaios por parte de Pelópidas Thebano (1934-2022), ainda no Castelinho Cultural do Alto da Bronze, onde se reuniam artistas e griôs responsáveis pelos projetos de criação do Museu de Percurso. Lá estavam, entre outros, Nilo Feijó (1934-2016), Nego Lua, Elaine do Mocambo, o pesquisador Iosvaldyr Bittencourt e o jovem artista Leandro Machado. O Painel é uma síntese dos valores civilizatórios da comunidade negra praticados ao longo da vida do mestre artista pela vivência nos espaços de sociabilidade negra. Para a execução da obra, diz o arquiteto e escultor Vinícius Vieira, milhares de fragmentos cerâmicos irregulares nas cores verde, amarelo, vermelho, preto, laranja e cinza foram cortados e castilhados à mão, um a um. Com isso, montados e, gradativamente, formando e construindo todas as representações originalmente concebidas por Thebano. Estas representações e as tramas com a história do negro em Porto Alegre foram trabalhadas e recriadas por adolescentes residentes no Quilombo do Areal, sob orientação do Grupo de Trabalho Angola Janga e do professor Arilson dos Santos Gomes. Referências: VARGAS, Pedro R. O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre ou, para muitos, a surpreendente história de um museu que não parece museu dedicado a um gaúcho que não é percebido como gaúcho. In: RAMOS, Jeanice D; VARGAS, Pedro R; SOUZA, Vinicius V. Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre: etapa IV. Porto Alegre, Editora Porto Alegre: 2015 SOUZA, Vinicius Vieira. Artes Visuais de Referência Afro-brasileira no espaço público de Porto Alegre. In: RAMOS, Jeanice D; VARGAS, Pedro R; SOUZA, Vinicius V. Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre: etapa IV. Porto Alegre, Editora Porto Alegre: 2015 SANTOS, Arilson Gomes; ESPÍNDOLA, Maria Elaine; XAPLIN, Adriana; ROSA, Elza Vieira. Depoimentos dos professores do Curso de Formação de Jovens Monitores de Percurso. In: RAMOS, Jeanice D; VARGAS, Pedro R; SOUZA, Vinicius V. Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre: etapa IV. Porto Alegre, Editora Porto Alegre: 2015
- Wilson Tibério
W ilson Tibério (1916-2005), ou Tibério, como preferiu ser nominado, foi um artista afro-brasileiro engajado no debate antirracista e colonialista do século XX. Pintor e escultor, nasceu em Porto Alegre e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde residiu até deixar o Brasil em 1947 quando, com uma bolsa de estudos, emigrou para a França. A partir da Europa, viajou para diversos países como artista convidado, como a China e a União Soviética, e viveu longas temporadas na Costa do Marfim, no Senegal e na Itália. Viajou pelo Sudão, Senegal, Daomé (Benin) e Alto Volta (Burkina Faso). Em Paris, se relacionou com importantes personagens da diáspora africana e do movimento Négritude. O artista nasceu e cresceu na região da Usina do Gasômetro e foi introduzido pelas mulheres de sua família, mãe, avó e tias no culto aos orixás. Construiu parte de sua expertise que o levou ao universo das artes atuando, na juventude, como coreógrafo no carnaval de Porto Alegre. Na então capital da República, o Rio de Janeiro, se formou na Escola Nacional de Belas Artes, onde recebeu menções honrosas e premiações em salões de arte. O interesse temático de Tibério era a vivência cotidiana da população negra e seus espaços de sociabilidade, como os morros cariocas, o Pelourinho de Salvador, ofícios tradicionais como quitandeiras e outros. Sua arte era o espelho da realidade social de negros e negras do país. Sua familiaridade em cenas religiosas de batuque o aproximou de Mãe Menininha, conheceu ainda Luiz Carlos Prestes, que o influenciou em sua decisão de filiação ao Partido Comunista Brasileiro e, junto com Abdias do Nascimento (1914-2011), foi um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro (TEM), onde teve atuação como coreógrafo. Na França, onde viveu de 1947 a 2005, quando faleceu aos 89 anos, Tibério dedicou sua arte ao interesse por temas africanos e a sua diáspora. Seu trabalho, visibilizado até em documentário para o cinema, se pautou de forma intensa pela denúncia ao colonialismo europeu em África, e a valorização, em oposição ao preconceito inerente à palavra negro. Duas de suas obras podem ser encontradas em museus públicos de Porto Alegre, uma na Pinacoteca Ruben Berta no Paço dos Açorianos, conhecido como Prefeitura Velha, e outra na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mais seis de duas produções pertencem ao acervo do Museu Afro Brasil, em São Paulo, estas doadas pelo artista negro Emanoel Araújo (1940-2022). As informações sobre sua biografia foram colhidas na entrevista dada pela companheira do artista, à pesquisadora Francielly Dossin, baseada em um texto não publicado traduzido do francês por Oliveira Silveira (1941-2009), documento (sem a entrevista) que se encontra na Pinacoteca Ruben Berta. Assim como pensa Dossin, a vida e a obra de Tibério podem ser definidas pela condição de ser negro. Referências: DOSSIN, Francielly. R. Entre evidências visuais e novas histórias: sobre a descolonização estética na arte contemporânea. UFSC. Tese de Doutorado, Florianópolis, 2016. SILVEIRA, Oliveira. Dossiê, tradução livre do francês. Documentação da pintura a óleo Bahia (1946) de Wilson Tibério. Acervo da Pinacoteca Aldo Locatelli da Prefeitura de Porto Alegre https://wilsontiberio.free.fr - site organizado por Giséle Tibério, filha do artista.
- Dr. Veridiano Farias
V eridiano Farias foi um músico e médico bastante atuante e conhecido no carnaval de Porto Alegre, nos anos 1930/1940. Ensaiador do bloco “Os Prediletos” (SANTOS, 2005, p. 78-79), tinha a música e o carnaval como sua paixão, além da medicina. Crê-se que Farias fora o segundo médico negro formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Filho do casal Maria Farias e Franklin Fortunato Farias, Veridiano nasceu em 1906 na cidade de Rio Grande, migrando aos 13 anos com a família para Porto Alegre, local onde nasceram seus outros seis irmãos (GOMES, 2016, p. 163-164). Na vida adulta, casou-se com Isabel e teve três filhos: Judith, William e Jurandir (SANTOS, 2005). Figura 1: Formatura do Dr. Veridiano Farias, UFRGS, Porto Alegre/RS – 1951. Fonte: Negro em Preto e Branco (SANTOS, 2005, p. 78). Figura 2: Músico Veridiano Farias, Porto Alegre/RS – anos 1930 Fonte: Negro em Preto e Branco (SANTOS, 2005, p. 79). Considerado “um músico completo”, Veridiano era multi-instrumentista, tocando diversos tipos de instrumentos – saxofone, violino, piano, bateria – do sopro à percussão (SANTOS, 2005). Como músico profissional, trabalhou em orquestras, como a da Rádio Farroupilha e Difusora, além de conjuntos musicais que tocavam na noite porto-alegrense, como o Jazz Paris, tornando-se amigo de nomes como Lupicínio Rodrigues e Jamelão, em sua passagem por terras cariocas. Dolzira Padilha, uma antiga foliã, ao relembrar os carnavais dos anos 1920/1930, tem Veridiano em sua memória como um carnavalesco apaixonado, ensaiador de bloco: “Então esse ‘Prediletos’ tirava campeão. [...] tinha um moço que era de cor também e ele formou-se médico [...] o Veridiano... E então ele é desses Prediletos, ele era fanático. Todo mundo conhecia o Veridiano.” (PADILHA, 1991, p. 2 apud VIEIRA, 2021, p. 171). É provável que, nessa época, Veridiano ainda trabalhasse como motorneiro, conduzindo bondes, tornando-se posteriormente chofer no Departamento Estadual de Saúde. Somente aos 36 anos concluiu o 2º grau no Colégio Estadual Júlio de Castilhos (GOMES, 2016). Mas isso não impediu o filho da dona de casa e do estivador do porto de aspirar a continuidade nos estudos, cuja persistência lhe renderia o apelido de o “teimoso”. No mesmo ano, em 1942, presta vestibular para Faculdade de Medicina de Porto Alegre (UFRGS), reprovando. Persiste e em 1943 é aprovado, mas não obtém classificação. Com a nota alcançada, ingressa na Faculdade de Ciência Médica do Rio de Janeiro (GOMES, 2016). Em 1947, após intervenção de seu pai junto ao governo federal, consegue transferência para a Faculdade de Medicina da UFRGS, onde forma-se em 1951. Colega, o Dr. Isaac Kelbert descreve a noite da formatura, conforme levantado pelo historiador Arilson Gomes (2016), no periódico A Hora , em 10 de setembro de 1954: [...] no dia 15 de dezembro de 1951, vestindo o seu impecável smoking teve o nosso herói a maior noite de sua vida [...], a maior salva de palmas da noite foi reservada para ele [...] pelo esforço, pela perda de horas de dormir, pelo sacrifício pessoal (apud GOMES, 2016, p. 167). No ano seguinte, o promissor médico falece precocemente, poucos dias antes de assumir como Diretor do Hospital Colônia Itapuã, na época ainda chamado de Leprosário. Em pouco tempo, torna-se nome de rua no bairro Petrópolis, a qual permanece até os dias atuais. Figura 1: Formatura do Dr. Veridiano Farias, UFRGS, Porto Alegre/RS – 1951. Fonte: Negro em Preto e Branco (SANTOS, 2005, p. 78). Figura 2: Músico Veridiano Farias, Porto Alegre/RS – anos 1930 Fonte: Negro em Preto e Branco (SANTOS, 2005, p. 79). Considerado “um músico completo”, Veridiano era multi-instrumentista, tocando diversos tipos de instrumentos – saxofone, violino, piano, bateria – do sopro à percussão (SANTOS, 2005). Como músico profissional, trabalhou em orquestras, como a da Rádio Farroupilha e Difusora, além de conjuntos musicais que tocavam na noite porto-alegrense, como o Jazz Paris, tornando-se amigo de nomes como Lupicínio Rodrigues e Jamelão, em sua passagem por terras cariocas. Dolzira Padilha, uma antiga foliã, ao relembrar os carnavais dos anos 1920/1930, tem Veridiano em sua memória como um carnavalesco apaixonado, ensaiador de bloco: “Então esse ‘Prediletos’ tirava campeão. [...] tinha um moço que era de cor também e ele formou-se médico [...] o Veridiano... E então ele é desses Prediletos, ele era fanático. Todo mundo conhecia o Veridiano.” (PADILHA, 1991, p. 2 apud VIEIRA, 2021, p. 171). É provável que, nessa época, Veridiano ainda trabalhasse como motorneiro, conduzindo bondes, tornando-se posteriormente chofer no Departamento Estadual de Saúde. Somente aos 36 anos concluiu o 2º grau no Colégio Estadual Júlio de Castilhos (GOMES, 2016). Mas isso não impediu o filho da dona de casa e do estivador do porto de aspirar a continuidade nos estudos, cuja persistência lhe renderia o apelido de o “teimoso”. No mesmo ano, em 1942, presta vestibular para Faculdade de Medicina de Porto Alegre (UFRGS), reprovando. Persiste e em 1943 é aprovado, mas não obtém classificação. Com a nota alcançada ingressa na Faculdade de Ciência Médica do Rio de Janeiro (GOMES, 2016). Em 1947, após intervenção de seu pai junto ao governo federal, consegue transferência para a Faculdade de Medicina da UFRGS, onde forma-se em 1951. Colega, o Dr. Isaac Kelbert descreve a noite da formatura, conforme levantado pelo historiador Arilson Gomes (2016), no periódico A Hora , em 10 de setembro de 1954: [...] no dia 15 de dezembro de 1951, vestindo o seu impecável smoking teve o nosso herói a maior noite de sua vida [...], a maior salva de palmas da noite foi reservada para ele [...] pelo esforço, pela perda de horas de dormir, pelo sacrifício pessoal (apud GOMES, 2016, p. 167). No ano seguinte, o promissor médico falece precocemente, poucos dias antes de assumir como Diretor do Hospital Colônia Itapuã, na época ainda chamado de Leprosário. Em pouco tempo, torna-se nome de rua no bairro Petrópolis, a qual permanece até os dias atuais. Referências HERÓIS de Todo Mundo - VERIDIANO FARIAS, por Éder Farias. [ S. l .]: Fundação Cultural Palmares, 15 mar. 2011. 1 vídeo (2 min 26 s). Publicado pelo canal Lapilar Produções Artísticas. Projeto: A cor da cultura. Série: Heróis de todo mundo. Episódio: Veridiano Farias, por Éder Farias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qxJkB6g_tLg. Acesso em: 22 fev. 2023. BRASIL. Fundação Cultural Palmares. Personalidades negras - Veridiano Farias. Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=30534. Acesso em: 22 fev. 2023. GOMES, Arilson dos Santos. Luciano Raul Panatieri e Veridiano Farias: a trajetória de dois médicos negros sul-rio-grandenses. In : QUEVEDO, Éverton Reis; POMATTI, Angela Beatriz (org.). Museu de História da Medicina – MUHM: um acervo vivo que se faz ponte entre o ontem e o hoje. Porto Alegre: Evangraf, 2016. p. 156-171. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/56577330/muhm-museu-de-historia-da-medicina. Acesso em: 22 fev. 2023. SANTOS, Irene (org.). Negro em Preto e Branco : história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: [ s. n. ], 2005. VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970) : geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023.
- Príncipe Custódio
O sujeito histórico Custódio Joaquim de Almeida (?-1935), o Príncipe Custódio, carrega em sua biografia uma série de lacunas fruto de uma gama de questões ainda não respondidas. Confirmações? Apenas o consenso de ter falecido em Porto Alegre em 1935 e de ter nascido no Continente Africano no século XIX. No entanto, as versões que procuram jogar luz a lugares de sombra da vida deste personagem complexo, coincidem sobre a importância do lugar assegurado a Custódio no imaginário da comunidade negra de Porto Alegre de mito político e afro-religioso. A narrativa até há bem pouco tempo dominante, da antropóloga Maria Helena Nunes da Silva, diz ser Custódio nominado em sua terra natal Osuanlele Okizi Erupê, nascido em 1831, filho primogênito do Obá (rei) Ovonramwen, do Benin, país que o príncipe deixou na segunda metade do século XIX, por questões políticas relacionadas à invasão dos ingleses em seus domínios. Os supostos laços de sangue de Custódio com a família real do Benin conferem uma aura de nobreza às práticas religiosas afro-brasileiras na capital, em especial o batuque, e demarca a importância simbólica do assentamento ao Bará do Mercado, atribuído ao príncipe por parte do grupo social de babalorixás e yalorixás. Em entrevistas (VARGAS, 2017, p. 154-155) relacionadas às origens do assentamento dedicado ao Bará no Mercado Central, sacerdotes associam o papel político do Príncipe à sua influência religiosa. O descrevem como um negro africano politicamente bem articulado, com contatos na elite local, aliado a seu papel como um grande líder dos cultos africanos. Ao relatar que o assentamento no Mercado não é o único na cidade, mas sim o mais importante, discorrem sobre o papel de liderança de Custódio junto com outros pais e mães de santo das primeiras décadas do século XX no assentamento de outros axés do Bará na Colônia Africana, Cidade Baixa e Bacia do Montserrat. Ou seja, por meio da atuação de Custódio, é possível mapear os territórios e a sociabilidade negra na primeira metade do século passado. Por outro lado, a pesquisa documental empreendida por Jovani Scherer e Rodrigo Weimer afasta a origem de Custódio de uma família reinante da África. Os autores de forma inédita veem Custódio, por esta versão, nascido em 1852/1853, como um dos filhos mais jovens de Manoel Custódio de Almeida, um retornado (ex-escravizado que volta ao continente africano) que vai se destacar como importante comerciante de escravos em sua terra natal. Sem se saber exatamente como nosso personagem chega a Porto Alegre, sua saída da África é atribuída à morte por envenenamento de seu pai e às brigas que se sucederam por seu espólio. A primeira vez que os pesquisadores localizam o nome de Custódio Joaquim de Almeida portador da alcunha de “Príncipe” é em um processo crime de 1885, em que está envolvido em uma briga de bar, onde declara ser africano e ter 32 anos. A partir deste ponto os historiadores vão traçar uma rota procurando estabelecer um mapa da vida do Príncipe. Por meio de reclames e postagens em jornais percebem que Custódio, a princípio um "turfman” que mantinha uma coudelaria de cavalos em sua casa, vai ganhando notoriedade na sociedade porto-alegrense, a partir do início do século XX, não apenas pelas corridas de cavalo, que com certeza o ajudaram a enlaçar vínculos com a elite da capital, mas principalmente por sua atuação no campo religioso, lugar de onde lhe era atribuído poder de cura. Nesse ponto pode-se pensar em um breve encontro entre os trabalhos de Maria Helena N. da Silva (1999) e o de Scherer e Weimer (2021). Os últimos, ao revisarem a produção de vários estudiosos, citam a influência do Príncipe nas casas de linha Jêje e o possível conhecimento de Custódio sobre o culto Sapatá ou Xapanã (para Maria Helena), orixá dono da saúde e da doença, o que mostraria seu o vínculo com Daomé, região onde situava-se Ajudá. O que os historiadores Jovani Scherer e Rodrigo Weimer apontam sobre o Príncipe, é que sua nobreza dizia respeito aos pobres da cidade e levou anos para ser construída. Custódio era um Príncipe do povo, onde exercia seu poderio, com base na autoridade religiosa, no domínio sobre a linguagem mágica, na generosidade do acolhimento de pessoas necessitadas, na cura e na mediação com a elite política. Embora envolto em algumas brumas, o interesse cada vez mais vivo pela sua biografia, com certeza, irá dissipar. Contudo, o espaço ocupado pelo Príncipe Custódio como referência para o empoderamento negro no RS, como atesta o vigoroso movimento das instituições do povo negro, vai continuar pautando discussões no campo político e religioso. Referências: VARGAS, Pedro Rubens. A Relação Patrimonial na Restauração de Bens Culturais : o mercado de Porto Alegre e os caminhos invisíveis do negro. Curitiba: Editora Appris, 2017. SILVA, Maria Helena Nunes. O Príncipe Custódio e a Religião Afro-Gaúcha . 1999. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999. WEIMER, Rodrigo de A.; SCHERER, Jovani. No Refluxo dos Retornados : Custódio Joaquim de Almeida, o príncipe africano de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS, 2021.
- Associação Prontidão
C ordão Carnavalesco, Sociedade Carnavalesca, Recreativa ou Beneficente foram as nomenclaturas agregadas e alteradas ao longo três décadas de existência do Prontidão. Foi fundado em 1º de março de 1925 por um grupo jovens que buscava uma forma de acessar um salão onde ocorria um baile de carnaval, no qual eles não tinham recursos suficientes para a compra dos convites. Segundo relatos dos antigos vivenciadores, os jovens articularam uma estratégia e conseguiram ingressar no salão cantando um refrão que fazia alusão à condição financeira de cada um “Pron, prontidão, pron, prontidão”. Nesta mesma noite ocorreu o ato de fundação do então Cordão Carnavalesco na moradia de Cecilia Pedroso, também fundadora das Vanguardeiras Prontistas. Entre os jovens fundadores estavam: José de Oliveira Lomando, Oscar Martins, Antônio Hermínio de Oliveira e Aderbal Braz. O Prontidão promoveu em suas sedes inúmeros bailes, cursos de alfabetização e assistência médica para os seus sócios. A sociedade esteve localizada em alguns espaços locados na da cidade de Porto Alegre. No ano de 1932, ocupava uma casa na rua General Lima e Silva n. 377 e, posteriormente, ocupou um prédio com dois pavimentos na rua Barão de Gravataí n. 645, onde permaneceu até a década 1960, neste momento, já como Sociedade Satélite Prontidão. Referências: Jornal A Federação , 23/07/1931. Jornal A Federação , 03/09/1931. Jornal A Federação ,17/02/1933. Um Histórico resumido da Associação Satélite Prontidão – Nilo Feijó. Acervo Memorial Associação Satélite Prontidão.
- Associação Satélite Porto-Alegrense
E m 05 de fevereiro de 1914, foi realizada na cidade a mudança de nomenclatura de um dos principais logradouros da então região da Cidade Baixa. Denominada de Concórdia recebeu a nominação do abolicionista brasileiro José do Patrocínio. Este ato reuniu inúmeras associações bailantes, recreativas e operárias, fundadas e mantidas pela comunidade negra local. Oficializada pelo poder público com a presença do intendente José Montaury (Partido Republicano Riograndense) a cerimônia teve continuidade nos salões da Sociedade Satélite Porto Alegrense. Fundada por famílias negras, 14 anos após a abolição oficial da escravidão em 20 de abril de 1902, a Sociedade Satélite recebeu nominações diferentes ao longo de sua trajetória, caracterizada pelas alterações em seus estatutos. Recreativa ou Bailante ou somente Satélite Porto Alegrense foi uma associação longeva agregando membros de diversas profissões (Comerciantes, advogados, funcionários públicos) que possibilitaram no decorrer de suas gestões a compra de um terreno para a construção de uma sede própria. Em um dos seus estatutos, do ano de 1921, a agência política de seus fundadores estava descrita ao longo de suas páginas descrevendo um dos principais objetivos – a educação ofertada a seus membros na manutenção de uma biblioteca para a leitura de obras cientificas, artes e ofícios, bem como a promoção de um caixa beneficente para auxílio nas enfermidades e falecimentos, e a edificação de uma sede própria. Neste sentido, nas primeiras três décadas a Sociedade esteve localizada em quatro endereços distintos: Rua Riachuelo n. 187 (área central da cidade), rua General Lima e Silva n. 56, Travessa Batista n. 12 (Ilhota) e Venezianos n. 368 – centrados, na sua maioria, nos territórios negros da cidade. A Sociedade promovia bailes, inclusive nas dependências do icônico Teatro São Pedro, participando de desfiles carnavalescos e festas organizadas por entidades negras da cidade e de fora desta. Na década de 1950, as atividades foram diminuindo até quase a sua paralisação. No ano 1956, em 30 de setembro, a Sociedade Satélite Porto Alegrenseoriginou, juntamente com a Sociedade Prontidão, uma outra organização – a Associação Satélite Prontidão. Referências: Jornal A Federação 08/02/1914. Jornal O Exemplo 07/05/1916. Jornal O Exemplo 17/03/1918. Jornal A Federação 08/01/1921. Jornal O Exemplo 25/02/1929. ZUBARAN, Maria Angélica. O Acervo do Jornal O Exemplo (1892-1930): patrimônio cultural afro-brasileiro. Revista Memória em Rede, Pelotas , v. 7, n. 12, 2015.
- Areal da Baronesa
Figura 1 – Mapa do Areal da Baronesa, Porto Alegre/RS – 1906 Fonte: Elaboração de Daniele Machado Vieira sobre Mapa de Porto Alegre/RS, 1906 (IHGRGS, 2005). O antigo Areal da Baronesa era uma grande área, que se estendia do atual Colégio Pão dos Pobres (área da residência do Barão e da Baronesa do Gravataí) até a Av. Ipiranga (antiga Rua dos Pretos Forros). Inicialmente uma zona de chácaras contígua à área central, embora separada desta pelo Riachinho (Arroio Dilúvio antes da canalização), a área foi urbanizada na virada do século XIX para o XX, compondo hoje parte dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus. Conforme pode ser observado no Mapa de 1906 (Figura 1), tinha como limites a Av. Praia de Belas à oeste, à leste a Rua 13 de Maio (atual Av. Getúlio Vargas) e o Riachinho; ao norte, a Ponte de Pedra e, ao sul, a Rua 28 de Setembro (antiga Rua dos Pretos Forros, parte da atual Avenida Ipiranga). Com registros de moradores na região desde meados do século XIX, a origem do arraial está relacionada ao parcelamento da chácara da Baronesa do Gravataí em 1879 (MATTOS, 2000, p. 39). Com o loteamento da chácara em terrenos e a abertura de novas ruas, a área passa a ser conhecida como Arraial da Baronesa. Mas a grande quantidade de areia grossa na região, oriunda do Lago Guaíba, levou ao trocadilho “Arraial” por “Areal”, consagrando o local como Areal da Baronesa, segundo o cronista Sanhudo (1961, p. 186). Documentos levantados pela pesquisadora Jane Mattos (2000, p. 41) atestam a presença de pessoas negras, livres ou ainda escravizadas, residindo no local já nos anos 1870. Crê-se que libertos na área não eram uma exceção, visto que nessa mesma época surge a Rua dos Pretos Forros (FRANCO, 2006, p. 425; MATTOS, 2000, p. 47), posteriormente denominada Rua 28 de Setembro, data da Lei do Ventre Livre. Limite sul do Areal da Baronesa, a Rua 28 de Setembro aparece pela primeira vez no mapa em 1888, juntamente com a Rua 13 de Maio, limite leste da área. É emblemático que os limites sul e leste do Areal da Baronesa, território majoritariamente negro, fossem denominações que faziam referência a dois marcos da emancipação negra: a Lei do Ventre Livre e a Abolição da Escravidão. O Areal da Baronesa ficou marcado na memória da cidade pela grande quantidade de terreiros de batuque e pelos animados carnavais. Palco de grandes carnavais, é no Areal que surge o Rei Momo Negro, na figura de Adão Alves de Oliveira, popularmente conhecido como Seu Lelé (GERMANO, 1999). Durante três anos, de 1948 a 1951, o Momo Lelé reina para seus súditos negros. O início do carnaval era precedido por um cortejo, que se iniciava na Ponte de Pedra. Seu Lelé contava que ele saia do Areal, levado de caiaque pelo Lago Guaíba até chegar à Ponte de Pedra e abrir o carnaval. Então quando chegou na Ponte de Pedra no primeiro ano, aí alguém já avisou para os blocos que estavam lá já em fila indiana de que o Rei Momo estava chegando naquele momento. [...] E aí já começou os clarins a tocar. [...] tocando alto e bem forte. Jogaram uns três ou quatro foguetes. Ali iniciava-se o primeiro carnaval do Areal da Baronesa com o Rei Momo preto (OLIVEIRA, 1991, p. 7 apud Germano, 1999). Os foliões seguiam em cortejo pela Rua João Alfredo (antiga Rua da Margem) até chegar no Areal. Os carnavais do Areal eram conhecidos como o “carnaval na areia”, pois as ruas eram de chão batido – um areião. O coreto de Seu Lelé ficava na Rua Baronesa do Gravataí, onde hoje encontra-se o Quilombo do Areal, localizado na Travessa Luiz Guaranha, uma das muitas “avenidas” da região. De acordo com os antigos moradores, as avenidas eram moradias coletivas de aluguel, espaço com diversas casas de madeira ou peças, distribuídas ao longo de um pátio ou corredor. O desmantelamento do antigo Areal da Baronesa esteve relacionado à canalização do Arroio Dilúvio, que separava o Areal da cidade. Ao ter seu trecho final retificado, o Riachinho deixa de correr por dentro da Cidade Baixa, possibilitando a incorporação da área do Areal à cidade e às suas lógicas de “modernização” e consequente exclusão das camadas de baixa renda. Referências FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre : guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006. GERMANO, Iris Graciela. Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia : os negros e o carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40. 1999. 275 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. MATTOS, Jane Rocha de. Que arraial que nada, aquilo lá é um areal : o Areal da Baronesa: imaginário e história (1879-1921). 2000. 158 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000. SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre : crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Edições Sulina, 1961. 1 v. SANTOS, Irene (org.). Negro em Preto e Branco : história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: [ s. n .], 2005. SANTOS, Irene (coord.) et al . Colonos e Quilombolas : memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [ s. n .], 2010. VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970) : geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023.
- Rua Arthur Rocha
L ocalizada na antiga Bacia do Mont'Serrat, hoje apenas Bairro Mont'Serrat, a Rua Arthur Rocha imortaliza o dramaturgo e teatrólogo negro Arthur Rodrigues da Rocha. Datada do início do século XX, foi a primeira via a ser ocupada na região, conforme os registros do cronista Sanhudo (1975, p. 111). Referindo-se às origens do Arraial do Mont'Serrat, Sanhudo relata que a primeira leva de moradores teria ocorrido antes de 1910, ano considerado como o início da ocupação do bairro. Em suas palavras: O bairro, ou melhor, o arraial, começou realmente com a construção da igreja de Nossa Senhora da Auxiliadora, aí pelo ano de 1910 [...]. Mas é verdade que antes disso já havia moradores aí nesses valões da antiga rua Álvaro Chaves, hoje Arthur Rocha (SANHUDO, 1975, p. 111). No Mapa de Porto Alegre de 1916, primeira vez que a área do Mont’Serrat aparece em um mapa da cidade, a Rua Arthur Rocha já está nomeada, sendo o limite leste da área (ver mapa no verbete “Bacia do Mont'Serrat”). Nascido na cidade de Rio Grande, Arthur Rodrigues da Rocha ou, simplesmente, Arthur Rocha, como se autodenominava, teve uma vida breve e uma longa produção intelectual. Filho de José Rodrigues da Rocha e Maria das Dores Rocha, uma família pobre, aos 13 anos muda-se para Porto Alegre para estudar. Em sua breve existência (1859-1888) foi dramaturgo, ator, jornalista, contista e ativista político, produzindo 14 peças teatrais – sete delas publicadas em três volumes intitulados Teatro de Arthur Rocha , conforme levantado por Isabel Silveira dos Santos (2009, p. 56), pesquisadora de sua obra. Redator dos jornais porto-alegrenses O Mosquito (1874), O Colibri (1877) e A Lente (1877), Arthur Rocha compôs o distinto grupo de intelectuais negros livres do final do século XIX, que tomaram posições radicais na crítica à sociedade da época e que encontraram na imprensa uma saída para debater os assuntos de interesse público, como a abolição da escravidão. (SANTOS, 2010). Com brilhante e afirmativa trajetória, Arthur Rocha era amplamente reverenciado pela comunidade negra na virada do século XX. Já falecido, tinha suas peças teatrais encenadas nos salões da Sociedade Floresta Aurora, como parte das comemorações de liberdade, ocorridas nas datas de 28 de setembro e 13 de maio, marcando a Lei do Ventre Livre e a Abolição da Escravidão (ZUBARAN, 2008, p. 176). Em setembro de 1904, a Sociedade Floresta Aurora publica, nas páginas do jornal negro O Exemplo , o convite para as comemorações da “gloriosa data de 28 de setembro”. O grandioso marco fora celebrado com “espetáculo de gala” e encenação da peça A Filha da Escrava “primorosa joia literária da lavra do imortal escritor Arthur Rocha”, conforme anunciado no convite. Ainda em atividade, o Floresta Aurora é o mais antigo clube social negro do país, fundado em 1872, em Porto Alegre/RS. Olhando a partir desse lugar de destaque a que fora alçado, consideramos que a escolha de Arthur Rocha para nomear o logradouro na Bacia do Mont’Serrat não foi aleatória, mas uma decisão consciente relacionada à vontade de marcar a presença negra naquele espaço a partir de um de seus ícones (VIEIRA, 2021). Figura 1 – Arthur Rodrigues da Rocha (1859-1888), intelectual negro gaúcho Fonte: SANTOS (2009, p. 49). Referências FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre : guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006. SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre : crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Editora Movimento: Instituto Estadual do Livro, 1975. 2 v. SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as cortinas : Representações étnico-raciais e pedagogias do palco no teatro de Arthur Rocha. 2009. 144 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. Disponível em: https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM103.pdf. Acesso em: 27 mar. 2017. SANTOS, Isabel Silveira dos. Arthur Rocha: um intelectual negro no “mundo dos brancos”. In : ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, X., Santa Maria. Anais [...].Santa Maria: UFSM, 2010. p. 1-16. Disponível em: http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279496410_ARQUIVO_ arthurrochaumintelectualnegronomundodosbrancos.pdf. Acesso em: 10 fev. 2015. VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970) : geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023. ZUBARAN, Maria Angélica. Comemorações da liberdade: lugares de memórias negras diaspóricas. Anos 90 , Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 161-187, jul. 2008. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/anos90/article/viewFile/6743/4045. Acesso em: 6 fev. 2017.
- Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
A primeira instituição denominada Santa Casa de Misericórdia foi criada em Lisboa, no ano de 1498. A partir dela, uma série de instituições semelhantes passaram a existir em Portugal e em territórios que estavam sob domínio português, localizados na Ásia, África e América. Assim surgiram e foram construídas as Casas de Misericórdia e suas irmandades. Tais instituições recebiam incentivo ou até mesmo eram criadas pelo Estado, pela Monarquia. Na intenção de trilharmos o caminho percorrido para o nascimento da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, necessitamos direcionar nossos olhares para os momentos finais do século XVIII, pois até o ano de 1795, a recém fundada, em Porto Alegre, ainda não constava com um espaço propriamente dedicado ao trato dos enfermos locais. A referência de amparo aos doentes e necessitados era o albergue em que morava uma mulher negra, chamada Angela Reiúna, localizado na Rua Pecados Mortaes, hoje Rua Bento Martins. Juntamente com Antônio José da Silva Flores e Luiz Antônio da Silva, Ângela, além dos serviços de saúde, levantava donativos e oferecia o preparo de refeições aos mais pobres. A partir disto, a primeira enfermaria da cidade foi construída, fruto da organização destes moradores que, de forma precária, atendiam doentes na região. A enfermaria era feita de tijolos das inúmeras olarias da cidade, servindo de legado ao projeto do Irmão Joaquim Francisco do Livramento que, em 1802, foi a Lisboa para pedir autorização e apoio na criação da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. A Santa Casa foi o primeiro hospital do Rio Grande do Sul. O início de sua construção se deu em 1803 e sua irmandade foi criada em 1814, sendo ela responsável pela administração do hospital, escrita do estatuto e demais atividades burocráticas. Os primeiros pacientes do hospital começaram a ser recebidos em 1º de janeiro de 1826. O tempo entre o começo da construção e o início dos atendimento aos pacientes foi marcado por uma série de disputas em torno do espaço. Com a morte do então governador interino da província, Brigadeiro Francisco João Rocio, houve a tentativa de instalar doentes militares no hospital, que seria o primeiro da então Vila de Porto Alegre e era destinado, principalmente, aos enfermos pobres, escravizados e presos. Estas diferenças de perspectiva em relação ao espaço foram responsáveis por esta lacuna temporal. Convém lembrar que, no século XIX, os hospitais não tinham a cura como objetivo principal, mas eram um misto de caridade e filantropia, que incluía, além do tratamento hospitalar, o encarceramento, auxílio aos necessitados e serviços funerários. Isso porque o melhor tratamento para doenças era o recebido em domicílio, sendo o hospital reservado àqueles que não possuíam casa. Uma das funções principais da instituição ao longo do XIX foi servir enquanto Casa da Roda, prática que já era comum em outros locais e se iniciou em Porto Alegre a partir de 1837. Neste ano, a Santa Casa recebeu a incumbência legal de criar e manter os infantes expostos , crianças recém-nascidas deixadas na instituição para serem criadas ou adotadas. A referência mais conhecida desta prática é a Roda dos Expostos. Grande parte das pessoas incumbidas pelos primeiros cuidados dessas crianças eram mulheres, em sua maioria negras, que trabalhavam enquanto amas de leite e se responsabilizavam pela criação e tutela dos expostos. Outra das atribuições da instituição era a responsabilidade sobre os doentes mentais, para os quais havia o Asilo dos Alienados, que durou até 1884, quando foi fundado o Hospital Psiquiátrico São Pedro. As alegações de pacientes entrando no hospital com psicopatologias eram muitas e seus registros se iniciam a partir de 1834, a alta demanda criou a necessidade de um espaço específico para estes atendimentos pois na década de 1870 o local já não tinha mais as condições necessárias para os pacientes. Neste sentido, também convém lembrar que no período escravocrata, uma série de cartas de alforria eram escritas e direcionadas à Santa Casa alegando necessidade de internação de escravizados, e por meio delas também havia o pedido para que as responsabilidades financeiras dos tratamentos passassem a ser da instituição, como mostra a carta de alforria de Eduarda, onde consta que: “[...] apesar de já se achar a mesma melhor daquele incômodo, peço a direção da mesma para Sta Casa de Misericórdia, a fim de ser ela aplicada ao serviço do estabelecimento e receber o serviço do estabelecimento, ficando eu exonerado de quaisquer despesas do seu tratamento quer anteriores quer posteriores [...]”. Temos outro documento, este escrito por Luiz Alves de Oliveira Bello, onde ele alega que um de seus escravizados, chamado Protázio, era “doido e pobre” e pede que o homem seja recolhido pela Santa Casa para ser tratado. Havia também casos em que os senhores pagavam as custas do tratamento dos escravizados, que poderiam variar de acordo com a idade e tempo de permanência do doente, sendo que a faixa etária média dos internados era de 13 a 30 anos. Ainda, o hospital possuía em seu terreno um cemitério para enterrar os membros da irmandade e indigentes do hospital. A partir de 1850, a instituição passou a enterrar os escravizados e os livres, fora da cidade, onde hoje situa-se o bairro Azenha. Conforme foi previamente apontado, para além de pacientes, os escravizados aparecem nos registros também como força de trabalho, assim como muitos livres e libertos. Outros eram antigos internados, que se somaram àqueles que foram comprados, alugados ou doados à Santa Casa. Quanto às atividades praticadas, atuavam como serventes nas enfermarias, na botica, no cemitério, na cozinha ou lavanderia, mas também podiam ser especializados, por exemplo, cuidando da sangria, já que era prática utilizada em grande escala nos navios que traziam escravizados da África. Em razão desta variedade de sujeitos e funções desempenhadas chama atenção o grande número de pessoas negras dentro da instituição. Tais indícios mostram que ao longo de sua história a instituição foi marcada por uma forte presença negra em diferentes partes de sua estrutura, como é o caso de Aurélio Veríssimo de Bittencourt, que na década de 1890 ocupava uma cadeira na direção do hospital. Assim, a presença negra na instituição era fundamental, pois estava diretamente ligada com a cura e/ou alívio dos sintomas e dores das pessoas internadas. E, assim, a Santa Casa constituiu-se como espaço de mobilidade social para estes indivíduos, que deixaram seus legados, demonstrando sua importância no que diz respeito às práticas de cura, cujas trajetórias são fundamentais para que se entenda a própria instituição e seus significados para Porto Alegre. Referências ALFORRIA Eduarda. DOC83 - Alforria Eduarda, 15.12.1863 . Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1863]. ALFORRIA Protázio. DOC1- Alforria Protázio, 07.11.1853. Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1853]. BRIZOLA, Jaqueline Hasan. Cativeiro e moléstia : a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o perfil de escravos enfermos no contexto do fim do tráfico negreiro no Brasil (1847-1853). 2010. Monografia (Licenciatura em História) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2006. HISTÓRIA CHC Santa Casa. In : CHC . [ S. I .], [20--?]. Disponível em: https://www.chcsantacasa.org.br/chc-santa-casa/historia/#:~:text=Localizada%20no%20Alto%20da%20Bronze,natal%2C%20e%20em%20Porto%20Alegre . Acesso em: 3 nov. 2022. LEAL, Noris Mara Pacheco Martins. Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre: 196 anos de amor à vida. Revista Acta Médica Misericordiae , [ S. l. ], v. 2., n. 2., p. 68-71, 1 dez. 1999. Disponível em: http://www.actamedica.org.br/publico/noticia.php?codigo=44&cod_menu=44 . Acesso em: 3 nov. 2022. TOMASCHEWSKI, Cláudia. Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva : A distribuição de assistência a partir das Irmandades da Santa Casa de Misericórdia nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c. 1847 - c. 1891. 2014. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
- João Cândido
J oão Cândido (1880-1869), Encuzilhada do Sul, Porto Alegre, Rio de Janeiro. João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul (antes distrito de Rio Pardo), na fazenda Coxilha Bonita, que ficava no vilarejo Dom Feliciano, no interior do Rio Grande do Sul, em 24 de junho de 1880, oito anos antes da abolição da escravatura. Mudou-se para Porto Alegre quando tinha dez anos de idade, permanecendo aos cuidados do almirante Alexandrino de Alencar (1848-1926). Neste período, em Porto Alegre, João Cândido, pela primeira vez, teve contato com um navio de guerra da Marinha Brasileira chamado Ondina, com o auxílio do Almirante. De acordo com a professora Maria Luci, o “futuro marinheiro chega ao cais na companhia do oficial, o que provoca grande curiosidade aos marujos que estavam a bordo; jamais um negro tivera regalia.” Em depoimento para a Anamnese do Hospital dos Alienados em abril de 1911, e para a Gazeta de Notícias , em 31 de dezembro de 1912, João Cândido afirma ter sido soldado do General Pinheiro Machado na Revolução Federalista de 1893, portanto, antes de entrar para a Escola de Aprendizes do Arsenal de Guerra de Porto Alegre. Quatro anos mais tarde, João Cândido ingressaria como grumete na Marinha do Brasil, indicado por seu tutor. Fez parte da Escola de Aprendizes-Marinheiros em Porto Alegre, em 1894, e depois atuou na instituição como instrutor. Por lá, exerceu diversas funções, tais como de artilheiro, faroleiro, maquinista, gajeiro, sinaleiro e timoneiro, em diferentes embarcações. A corporação costumava ser o destino certeiro de jovens excluídos da sociedade, negros em sua maioria. Muitas vezes, os moços chegavam à Marinha indicados pela polícia e este encaminhamento era visto como uma punição. A instituição era composta, na época, de 50% negros, 30% mulatos, 10% caboclos e 10% brancos. E se no alto da hierarquia estavam os oficiais de alta patente e, em geral, brancos, a maioria dos marinheiros era preenchida por homens pobres, normalmente filhos de escravizados, que recebiam os piores salários e eram humilhados com frequência. Como bem explica, entre outros, Álvaro Pereira do Nascimento, os castigos físicos haviam sido abolidos no Exército em 1874, mas na Marinha persistia a aplicação de chibatadas, instrumento símbolo do período em que vigorava o sistema escravocrata – sendo que a escravidão tinha sido extinta 22 anos antes. Mas João Cândido faria carreira, como grumete, quando foi destacado para trabalhar no Rio de Janeiro, lotado na Divisão de Instrução do navio-escola Benjamin Constant para cumprir diferentes funções: artilharia, torpedo, levantamento, levantamento hidrográfico, evolução, bloqueio de portos, tiro ao alvo e reconhecimento de portos. João Cândido percorreu todo o litoral brasileiro, as principais bacias hidrográficas (Prata e Amazônica) e navegou por quatro continentes (África, Europa, América do Norte e América do Sul). Conheceu personagens e presenciou eventos históricos. Instruiu-se nas artes militares, recebeu elogios, promoções, rebaixamentos e punições, aprendizados múltiplos marcados pela presença das águas e a presença soberana do mar durante 15 anos. No início do ano de 1900, participou da missão republicana quando o Brasil disputou diplomaticamente com a Bolívia o território do Acre. O marinheiro negro rumou para Belém do Pará e Manaus, quando contraiu tuberculose pulmonar, por volta de 1904, tendo que permanecer por 90 dias no Hospital da Marinha para tratar da doença, depois retornando ao Rio de Janeiro. João Cândido foi enviado para Newcastle-on-Tyle , na Inglaterra, em julho de 1909, junto com outros marinheiros, para acompanhar o fim da construção, especializar-se no equipamento e compor a tripulação do navio de guerra brasileiro, o encouraçado Minas Geraes . Foi por lá que tomou contato com as ideias politizadas dos marujos ingleses. Não por coincidência, de volta, os brasileiros começaram a questionar a situação vivenciada pela corporação. A nova esquadra brasileira ficou pronta em 1910, com seus 34 canhões. Nos meses seguintes, vieram o encouraçado São Paulo (também de grande porte) e o cruzador-ligeiro Bahia . Na Europa, João Cândido conviveu com marinheiros de todas as partes e conheceu um dos mais politizados e organizados proletários existentes. Também já era grande a indignação da tripulação da Armada Brasileira contra os castigos corporais que sofria constantemente, além do excesso de trabalho e da péssima remuneração. Os oficiais viam os marinheiros simplesmente como escravos. Depois, a própria revolução do nível técnico-científico desses marinheiros que, com novas belonaves, foram transformados em peritos foguistas, mecânicos, eletricistas etc., tiveram seu peso. Iniciaram-se, assim, as primeiras reuniões para se discutir uma possível mudança. Na Inglaterra, João Cândido mandou pintar, à carvão, o perfil de Nilo Peçanha (1867-1924), chefe de governo, por quem nutria grande simpatia, há algum tempo. Quando o Minas Geraes chegou ao Rio, foi visitado pelo presidente e todo o ministério. O ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, mostrou o quadro ao presidente, que mandou marcar audiência com João Cândido, para comparecer no Palácio do Catete, ocasião em que o marinheiro negro entregou o quadro e, ao mesmo tempo, suplicou ao presidente, em nome de milhares de marinheiros a abolição da chibata na Armada. Como vimos, embora tal tipo de punição fosse proibida desde a Constituição imperial de 1824, a Marinha só mudaria seus métodos por meio do Decreto n.º 3 de 16 de novembro de 1889, assinado pelo então presidente Marechal Deodoro da Fonseca, com a legislatura da nova República que acabou proibindo a prática. Mas a Lei foi reavivada com o castigo sendo permitido em “campanha correcional” e para casos de “má conduta”. Apesar do enorme poderio bélico e da modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disciplinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso de chibata e de outras punições, como prisão solitária, diminuição de comida, degredo e ficar “a ferros” (acorrentado). Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser aplicado, a critério dos oficiais, assim atingindo um contingente de 90% de negros e mulatos – centenas de marujos continuavam a ter seus corpos retalhados pela chibata como no tempo da escravidão. Por ocasião das comemorações do centenário da independência do Chile, os navios Bahia, Tamoio e Timbira foram mandados representar o Brasil, mas foram tantos os castigos aplicados aos marinheiros durante a viagem que aquele conjunto de belonaves ganhou o apelido de Divisão da Morte. A Revolta da Chibata, sob a liderança do marinheiro negro João Cândido Felisberto, foi um ato de insatisfação ocorrido no início da República devido ao uso da chibata como castigo na armada brasileira, que reivindicava o fim da prática de torturas que remontava aos tempos da escravidão, e dos maus-tratos infligidos aos subalternos pela oficialidade nos navios da Marinha de Guerra Brasileira. Um grande movimento começou em 1910 e contou com a liderança de João Cândido, marinheiro de 1ª classe, da 16ª Companhia da Marinha nacional, logo apelidado de Almirante Negro. Na noite de 21 de novembro de 1910, o marinheiro negro Marcelino Rodrigues de Meneses, no convés do Minas Geraes , nau capitânia da nova esquadra, foi condenado a 250 chibatadas na frente de toda a tripulação – castigo que continuou, apesar do desfalecimento da vítima. Seis dias depois, a Revolta explodiu. A insurreição se desencadeou a bordo do Minas Geraes , mas, em seguida, atingiu outros navios, que tiveram seus comandantes destituídos. Este fato antecipou a data programada para a insurreição de 25 para 22 de novembro de 1910, justamente na noite que o comandante do navio Minas Geraes, o Capitão João Batista das Neves, dormiria fora do navio, porém retornou mais cedo. Então os marujos tomariam a posse das armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, tendo o controle do navio-mãe. Depois, os marinheiros indignados tomaram dois encouraçados e os apontaram da baía da Guanabara para a cidade. Já eram, a essa altura, cerca de 2.300 marinheiros amotinados, entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910, e que tinham sob seu comando os principais navios de guerra da esquadra: Minas Geraes , São Paulo , Bahia , Timbira e Deodoro , todos apontando os canhões sobre a então capital do Brasil, exigindo o fim dos castigos corporais vigentes na Marinha. O movimento que ficaria conhecido por Revolta da Chibata, trouxe para a cena pública setores oprimidos da população, como agentes históricos transformadores. Além de exigirem o fim da chibata, os rebeldes pediam também, anistia. O governo do marechal Hermes da Fonseca (empossado há uma semana como oitavo Presidente da República no Brasil) e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram rapidamente todas as condições. No espaço de apenas cinco dias, o marujo gaúcho se transformou de ilustre desconhecido em uma grande celebridade no Brasil. Foi o começo de uma relação ambivalente que perseguiu João Cândido por toda a vida; ele atraía admiração, mas também, e nas mesmas doses, muito ódio. Após quatro dias de tensão na capital federal, a Revolta terminou em 27 de novembro de 1910, com a anistia aos revoltosos concedida pelo governo. Anistiados, os marinheiros devolveram os navios e largaram as armas. No entanto, no dia seguinte, dia 27, o marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) assinaria do Decreto que permitia a exclusão da Armada de todos os marinheiros que representassem risco, o que era quebra de palavra, uma traição do texto da Lei de Anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da República e sancionada pelo presidente da República. Doze dias depois, ocorre outra rebelião, dessa vez envolvendo as guarnições do batalhão naval (na Ilha das Cobras) e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Os combates foram rápidos, porém mais violentos do que na insurreição de novembro, pois o governo partia para esmagar os rebeldes, quando as perdas somaram 24 mortos e 134 feridos. Os navios com os marujos da Revolta da Chibata, contudo, não tiveram qualquer participação nesse segundo episódio, mas o governo aproveitou do pretexto para fazer uma perseguição mais violenta. O saldo da repressão resultaria em 1.216 expulsões da Marinha, número equivalente a quase metade dos participantes da Revolta da Chibata; 600 pessoas presas, inclusive os líderes do movimento (que sofreram maus-tratos); degredo e trabalho escravo para centenas; e, ainda, um número não contabilizados de assassinatos. Dezoito líderes foram para a solitária do batalhão Naval Ilha das Cobras no Rio. Apenas João Cândido e um companheiro saíram vivos de lá. Em 18 de abril de 1911, como “doente mental”, ele foi transferido aos Hospício dos Alienados, onde permaneceu por dois meses e, em seguida, foi mais uma vez remetido ao presídio Ilha das Cobra, onde sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Depois, foi internado no Hospital de Alienados, na praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Após 18 meses de detenção, ele e os demais colegas de prisão apresentaram-se ao Conselho de Guerra. Foram defendidos por advogados contratados pela Irmandade da Nossa Senhora do Rosário, que nada cobraram pelo serviço. No dia 1º de dezembro de 1912, foram absolvidos, mas excluídos para sempre da Marinha. Ao deixar a cadeia, em 30 de dezembro de 1912, João Cândido, mesmo sentindo o gosto da liberdade, estava quebrado – sem dinheiro e enfraquecido. Ele, também teve uma notícia ruim (embora não surpreendente): acabava de ser excluído dos quadros da Marinha de Guerra do Brasil. Foi o último dia em que usou a farda. Passou a morar na casa do carpinteiro Freitas, no bucólico bairro de Laranjeiras, na zona sul carioca, ao mesmo tempo em que passou a trabalhar no serviço pesado do porto. Após, emprega-se no veleiro Antônico para conduzir a embarcação dos portos do sul do país ao Rio de Janeiro como comandante. Trabalhou em diversas atividades laborais na Marinha Mercante e em barcos particulares, porém os oficiais da Marinha pressionavam os patrões e João Cândido era sistematicamente demitido. Logo depois, se casou com Marieta, na Igreja Nossa Senhora da Glória, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), uma das filhas de Freitas. A relativa calma durou pouco mais de um ano, quando João Cândido foi demitido das atividades na Marinha Mercante. Começou, então, a ser boicotado e conseguiu emprego na descarga de peixes na praça Quinze. Em 1917, sua esposa faleceu e, três anos depois, ele conheceu Maria Dolores, de apenas 18 anos. Foi então que, em 1919, juntando o dinheiro que restava do líder da Revolta da Chibata, comprou o modesto caíque Três Marias para pescar perto dali, no mercado do cais Pharoux (Praça XV). Em condição de pobreza, mas perto dos elementos entre os quais ficavam mais à vontade (cais, navios, marinheiros, o mar) e no meio de sua gente, viveu por quatro décadas, sem salário fixo ou garantias sociais, como os demais pescadores pobres em todo Brasil. A relação entre o casal terminou de maneira trágica: em 1928, ela ateou fogo ao próprio corpo diante das duas filhas mais velhas do casal. Em 1953, despede-se do navio Minas Geraes , vendido como sucata à Itália. Em seguida, volta à terra natal para receber homenagem, que foi cancelada pela Marinha Brasileira. Contudo, sempre atento à política, João acompanhou com entusiasmo o nascimento do grupo de esquerda Aliança Nacional Libertadora e, anos mais tarde, o surgimento da Ação Integralista Brasileira, seduzido por alguns oficiais integrantes da Marinha, assim como o líder Abdias do Nascimento e o bispo Dom Helder Câmara. Em 1964, foi derrotada a Rebelião dos Marinheiros, na qual Cândido tomou parte. Em 1968, casado com Ana, João Cândido concedeu entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e declarou o seguinte: “E o caso era este. Nós que vinhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha do Brasil ainda o homem tirasse a camisa para ser chicoteado por outro homem.” Nos anos finais de sua vida, o Almirante Negro recebeu pensão da prefeitura da sua cidade natal. Faleceu, pobre, altivo em relativo anonimato, em uma tarde chuvosa de 06 de dezembro de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, com 89, vítima de um câncer do intestino. Morava em um casebre na baixada fluminense, em uma rua sem saneamento básico ou luz elétrica. Seu enterro, em plena ditadura militar, foi cercado de policiais à paisana. Além de filhos e netos, também compareceram alguns conselheiros da Associação Brasileira de Imprensa; o amigo pastor Luiz Manzon, que encomendou o corpo, o jornalista e amigo Edmar Morel que, emocionado, declarou à beira do túmulo: “Você dignificou a espécie humana. Adeus, João Cândido.” Entretanto, a revolta que liderou entrou para a história como um movimento pós-emancipação, e seu nome permanece motivando aqueles que, cansados dos tratos humilhantes e da falta de respeito, exclusão social e discriminação racial, lutam por um país com condições melhores e com mais direitos para a massa de trabalhadores. Em 22 de novembro de 1984, quando a Revolta da Chibata completou 74 anos, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro concedeu o título de Cidadão Carioca póstumo ao marinheiro João Cândido, por iniciativa do vereador Jorge Ligeiro. Em 1991, ele recebeu o título póstumo de cidadão honorário de São João do Meriti, no Rio de Janeiro. Em 2002, a Senadora Marina Silva e o ex-deputado Marcos Afonso apresentam um projeto de anistia póstuma a João Cândido e seus companheiros da Revolta da Chibata. Com a mobilização do Movimento Social Negro, em 24 de julho de 2008 foi publicada a Lei Federal n.º 11.756/2008 no Diário Oficial da União , a qual concedeu a anistia póstuma a João Cândido Felisberto e aos demais participantes do movimento, embora tivesse ficado de fora promoções e indenizações. Com a publicação do livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata , pela editora Irmãos Pongetti, em 1959, a trajetória histórica e heroica de João Cândido ganhou ampla visibilidade. Apesar de todas as adversidades e injustiças sofridas por João Cândido, ele não foi privado de ser consagrado como “Almirante Negro”, herói do povo brasileiro. Entre as homenagens que recebeu, o marujo gaúcho foi ao Rio Grande do Sul, em sua única viagem aérea, para uma sessão promovida pela Sociedade Floresta Aurora, clube social negro e sesquicentenário de Porto Alegre. A pedido do clube nego, o renomado escultor Vasco Prado (1914-1998) modelou em barro o busto original de João Cândido, em 1959. Ele foi fundido em bronze, 40 anos depois, quando em 22 de novembro de 2001, a obra foi assentada e inaugurada no Parque Marinha do Brasil, no bairro Praia de Belas, em Porto Alegre. Em novembro de 2007, uma estátua-monumento de João Cândido de três metros de altura, já consagrado como “Almirante Negro”, foi inaugurada no pátio do Museu da República (Palácio do Catete), voltada para o mar. Ainda não existe um filme de longa-metragem, mas diversos curtas já circularam em salas de exibição sobre sua trajetória heroica: o documentário/ficção João Cândido, um Almirante Negro (1987); João Cândido e a Revolta das Chibatas (2004); o documentário Memórias da Chibata , dentre outros, além de diversas peças teatrais, vários livros e teses universitárias. Sua saga foi tema do famoso samba “O Mestre-sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, em 1975, sobretudo em sua versão original cantada por Elis Regina, que depois sofreu várias modificações impostas pela censura, durante o período da ditadura militar: O Almirante Negro (Letra original antes da censura) João Bosco e Aldir Blanc Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo marinheiro A quem a história não esqueceu Conhecido como almirante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas Jorravam das costas dos negros Entre cantos e chibatas Inundando o coração De toda a tripulação Que a exemplo do marinheiro gritava: não! Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glórias a todas as lutas inglórias Que através da nossa História ...não esqueceremos jamais... Salve o almirante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve...) Salve o Almirante Negro Que tem por monumento As pedras pisadas dos cais! O Mestre-Sala Dos Mares (Letra censurada e divulgada) João Bosco e Aldir Blanca Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro A quem a história não esqueceu Conhecido como navegante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Rubras cascatas Jorravam das costas dos santos Entre cantos e chibatas Inundando o coração De todo o pessoal do porão Que a exemplo do feiticeiro gritava, então: Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glórias a todas as lutas inglórias Que através da nossa História ...não esqueceremos jamais... Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve...) Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Sobre João Cândido, o Almirante Negro, o escritor e crítico literário Antônio Cândido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, Teatro Popular, Olho Vivo , declarou o seguinte: “Ninguém mais do que esse lutador negro mostrou aos brasileiros que todos os sacrifícios se justificam no combate pela dignidade básica do homem: o direito inalienável de ser respeitado.” Sendo assim, João Cândido Felisberto está eternizado como um herói brasileiro. Referências BARBOSA, Paulo Côrrea; SCHUMAHER, Schuma. Almanaque Histórico – João Cândido – a luta pelos direitos humanos. Brasília: Abravídeo, 2008. GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia NEGRA . 1. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2021. LOPES, Vera Neusa; SANGER, Dircenara dos Santos. João Cândido: personalidade da história brasileira. Identidade, Boletim do Grupo de Negros e Negras da EST/IECLB , São Leopoldo, v. 8, jul./dez. 2005. MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido . Porto Alegre: Edições Tchê, 1984. MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido – A Revolta da Chibata. 3. ed. atualizada. , Porto Alegre: Editora da Cidade, 2010. PEREIRA, Lúcia Regina Brito. Africanidades Sul-Rio-Grandenses . 1. ed. João Pessoa: Editora Grafset, 2012. (Coleção A África Está em Nós - História e Cultura Afro-Brasileira). PESTANA, Maurício. João Cândido – Herói Brasileiro. Centenário da Revolta da Chibata. Brasília: Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial: Governo Federal, 2010.
- Pelópidas Thebano
A rtista plástico, desenhista e figurinista, Pelópidas Thebano Ondemar Parente nasceu em Porto Alegre, RS, em 23 de abril de 1934. É filho do militar Antônio Augusto Waldemar Parente e de Ondina Silva Parente, que era costureira no Exército Brasileiro. Desde cedo destacou-se com desenho artístico e, sobretudo, como artista plástico. Durante o período que estudou no Colégio Rosário, ganhou o primeiro lugar e um concurso de desenho e duas menções honrosas no concurso estadual patrocinado pela Liga de Defesa Nacional no período de 1946 a 1947. Durante sua infância, o artista colocava-se ao lado do pai, sentado no chão, quando pegava folhas de papel para rabiscar e desenhar, ao mesmo tempo em que o pai lhe ofertava lápis em diversas cores. Thebano era um grande admirador do artista plástico espanhol Joan Miró, em face a utilização da profusão de cores traduzidas em suas telas, e que Thebano elabora magnificamente em sua arte afrocentrada nas pinturas e nos arranjos cerâmicos multicoloridos. Entre as décadas de 50 e 80 destacou-se como figurinista de blocos de carnaval da cidade de Porto Alegre. Deste modo, seu desenvolvimento artístico também teve início no carnaval. Ele foi figurinista de inúmeros blocos carnavalescos. Neste período da história do carnaval de Porto Alegre, havia diversos blocos no primeiro quartel do século XIX, tais como os Guaranis, os Xavantes, os Ases do Ritmo, Os Comandos, o X do Problema, o Aratimbó e outras agremiações. Desde então, passou a ser reconhecido como artista plástico. Thebano desfilou, também, por algumas agremiações carnavalescas, dentre elas a tribo carnavalesca Xavantes e a Escola de Samba Praiana. Fez carreira no serviço público estadual, na Secretaria Estadual de Obras Públicas do Rio Grande do Sul, onde atuou entre as décadas de 1950 e 1990, como desenhista arquitetônico, paisagista e urbanista. Sobre este período profissional, ele comentou: Era muito solicitado pelos arquitetos e, às vezes, fazia muitos serviços particulares, os chamados ‘cabritos’. Em Porto Alegre, aqui, desenhei muitas obras de edifícios, planos diretores, como tem o Centro Administrativo. Eu ajudei a desenhar o Jardim Botânico, O Mirante, lá do Caracol...e, aí, eu fui aprimorando o meu trabalho. Por isso, é que eu tenho essa facilidade de desenhar prédios, né. O artista plástico Thebano contribuiu com o desenho para a primeira versão, junto à Metroplan, do meio de transporte Aeromóvel, idealização do engenheiro gaúcho Oskar Coester. A partir de 1985, aprofundou seus estudos em pintura, o que o levou a participar mais intensamente de uma série de exposições e iniciativas ligadas às artes visuais. Depois de se desvincular como desenhista técnico da prefeitura de Porto Alegre, Pelópidas Thebano passou a se dedicar integralmente à pintura, assim ganhando projeção e reconhecimento como artista. Em visita de férias ao seu filho Paulo Roberto Marques Parente a Salvador (BA), também teve uma imersão no cenário cultural da Bahia, cuja experiência influenciou muito no desenvolvimento futuro de seu trabalho artístico. Sua pintura, que se vale de diferentes técnicas e materiais, inclusive cola colorida, carrega ainda as marcas do desenho. Pelópidas compôs uma série que evoca a diáspora africana e aponta seus desdobramentos nas sociedades ocidentais. Seguindo uma sequência cronológica, o artista começa pela partida forçada dos negros africanos e a chamada travessia de Calunga Grande, registrando depois a escravatura nas lavouras e, adiante, a inserção dos negros nos parques industriais das grandes cidades. A partir disso, é possível propor uma discussão sobre a influência negra nas manifestações culturais, como danças, festejos, folguedos e artes. Pelópidas Thebano trabalha com a ideia de resgatar, através do estudo histórico, os elementos que conformaram a atual situação do povo negro no Brasil. Desta forma, seus quadros são resultados de colagens de elementos diversos em que estão sempre presentes o “negro”, o “senhor”, a “natureza” e a “África”. O artista ressalta que o negro está longe de sua cultura original, que é preciso “reaprender” os aspectos essenciais. Com este objetivo, Thebano aponta a necessidade de se ter de “estudar” o passado e a importância da pesquisa. A questão latente para ele era descobrir ao longo dos processos históricos quando o negro foi sendo gradativamente obrigado a “incorporar” o modo de vida branco, o porquê deste último ser sempre relacionado com “dignidade” e “prestígio”, enquanto o negro é relacionado com “preguiça” e “atraso”. Nesse sentido, Thebano fez parte com seu amigo e compadre Américo de Souza (idealizador do Troféu Zumbi, Clube Social Negro Satélite Prontidão), que é escultor, pintor, idealizador e organizador do grupo formado por artistas plásticos negros e negras, tais como Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva e que fundaram a Frente Negra de Arte (FNA). As tratativas para fundar a FNA ocorreram entre os anos de 1999 e 2000, mas foi em 8 de dezembro de 2001, no clube social negro Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora, de Porto Alegre, que reuniram-se mais de vinte artistas plásticos e artesão negros, por ocasião da realização do primeiro Fórum Social Mundial, e cujo objetivo era o de levar a “educação” e o “gosto” para as crianças negras, algo que a arte, devido ao seu potencial intelectual, pode servir de instrumento. A FNA inspirou-se na Frente Negra Brasileira, movimento negro da década de 1930. Contudo, do ponto de vista ideológico os artistas negros, alinharam-se às perspectivas e propósitos do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento. O artista gaúcho participou da equipe do Museu do Percurso Negro em Porto Alegre, sendo autor e coautor de vários Marcos Visuais que integram o museu, tais como o “Tambor” (Praça Brigadeiro Sampaio); o “Bará do Mercado” (Mercado Público de Porto Alegre) e o “Painel Afrobrasileiro”, este último está instalado no Largo Glênio Peres. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil. Thebano teve contribuição artística e técnica fundamental na concepção coletiva do marco escultural “Tambor”, localizado na Praça Brigadeiro Sampaio, antigo Largo da Forca (Centro Histórico de Porto Alegre), no início da Rua dos Andradas (Rua da Praia), junto com os artistas plásticos, escultores e griôts , como Gutê (Carlos Augusto da Silva), Leandro Machado, Maria Elaine Rodrigues, Marcos Mattos e Adriana Xaplin. O Tambor foi a primeira obra do Museu de Percurso de Porto Alegre, inaugurada em abril de 2010. Ele surge como um grande agregador das diferentes composições que se formaram durante a etapa de criação dele. As ilustrações nele contidas se referem às negras quitandeiras, aos lanceiros negros, povo de terreiro, aos estudantes negros, aos carnavalescos; aos escravizados marítimos, aos, capoeiristas, que vivenciaram o mundo social do trabalho nos períodos colonial e imperial gaúcho. Os desenhos elaborados por Pelópidas Thebano contribuíram para ressignificar afirmativamente e sinalizar o reconhecimento da presença afirmativa da comunidade negra em Porto Alegre, por meio das suas múltiplas singularidades sociais e culturais, agora afirmadas publicamente e com enorme visibilidade nos espaços sociais e urbanos no centro da metrópole. O Marco Visual ao Bará do Mercado, localizado na área central do Mercado Público é a terceira obra de arte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. A obra, idealizada pela Mãe Norinha de Oxalá, foi concebida pelos artistas visuais Pelópidas Thebano e Leandro Machado, e executada pelos artistas Leonardo Posenato, Vilmar Santos e Vinícius Vieira. Ela homenageia o Orixá Bará no centro do Mercado Público, assim fortalecendo as tradicionais manifestações culturais, étnicas e religiosas ali realizadas, marcando mais um lugar histórico da territorialidade negra na cidade de Porto Alegre. Com projeto apresentado à Petrobrás, foi inaugurado em fevereiro de 2013. Segundo Pelópidas Thebano, o assentamento do Bará ganha força com uma simbologia visual amarrada às tradições africanas. As cores vermelho e amarelo ressurgem e envolvem as 7 chaves do painel de piso, em um desenho novamente curvo, como os outros marcos do museu. Agora, o Bará ganha visibilidade com luz, no ponto central do comércio de Porto Alegre, lugar de troca de saberes e da oralidade afrobrasileira viva. A obra de arte foi executada após uma década de desdobramentos institucionais. Em 2013, o lugar do assentamento do Bará foi indicado como Bem Cultural Imaterial de Porto Alegre, aprovado pelo Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC), passando a fazer parte do patrimônio cultural da cidade. Pelópidas Thebano realizou inúmeros estudos para uma terceira contribuição artística, até idealizar e finalizar o Painel Afro-brasileiro. Posteriormente, foi realizado um extenso trabalho para que em sua execução a obra apresentasse a mesma intensidade de cores que o modelo original. O painel é formado por pequenos fragmentos de cerâmica com cores vibrantes de verde, amarelo, vermelho, preto, cinza e laranja, que formam um conjunto com pessoas pretas que sobressaem em meio a uma trama de recortes geométricos e linhas sinuosas, evocando a visualidade e a ocupação negra do espaço, evidenciando também sua história e resistência. O trabalho recebeu autorização para execução em 2011, mas os recursos para sua construção só foram alcançados em 2014, quando a IV Etapa do projeto do museu foi selecionada pelo edital do Prêmio Funarte de Arte Negra. No catálogo desenvolvido especialmente para o projeto, Vinícius Vieira relata alguns detalhes da confecção do mosaico e explica que antes da finalização da obra, com a moldura de aço inoxidável, foi aplicado um rejunte escuro que, além de unir os fragmentos cerâmicos coloridos, contribui para que as peças aparentam uma unidade, diluindo a composição heterogênea da obra. A primeira etapa do Museu, concluída no ano de 2011, foi realizada por diversas entidades, sob a coordenação gestora do Grupo de Trabalho Angola Janga. Nessa etapa o Museu fazia parte do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura (MinC), executado com recursos da União, de estados e de municípios, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e cooperação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da UNESCO. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil. Em sua trajetória, Pelópidas Thebano conta com exposições na Câmara Municipal de Porto Alegre (2004), onde foi homenageado com o Prêmio Quilombo dos Palmares na Modalidade Atuação Artística e Cultural, Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 2001 e 2002), em parceria com Américo de Souza, Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva. Santander Cultural, Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento Rio Grande do Sul (IAB-RS) (2011); troféu Carlos Santos da Câmara Municipal de Porto Alegre, em 2012; exposição coletiva Porto Negro Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo (2016), Memorial Carlos Alberto de Oliveira (2019) e recebeu o destacado prêmio de Artista Homenageado do XIV Prêmio Açorianos de Artes Plásticas Porto Alegre (2021). Possui trabalhos em coleções e museus do Brasil, entre os quais: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Porto Alegre/Brasil; Pinacoteca Ruben Berta, Porto Alegre/Brasil; Museu de Percurso do Negro, Porto Alegre/Brasil; e Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), Porto Alegre/Brasil. O Painel Afro-brasileiro foi inaugurado no dia 20 de novembro de 2014, Dia Nacional da Consciência Negra, data idealizada pelo poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira, e instalado no muro do Chalé da Praça XV de Novembro. Assim, está localizado em um dos principais pontos de circulação da cidade, caracterizado como um espaço de encontros democráticos, palco de diferentes manifestações políticas e culturais. As cores presentes no Painel conversam com o tom das pedras onde estão fixadas e, ao mesmo tempo, contrastam com a sobriedade dos edifícios históricos e as nuances cinzentas típicas dos centros urbanos. O mosaico parece replicar no equipamento urbano a técnica aplicada na obra. Assim como os fragmentos coloridos, o painel é uma pequena parte do conjunto de marcos que integram o acervo do Museu de Percurso de Percurso do Negro e que preenche alguns vazios da arte pública de Porto Alegre: a carência de obras muralistas e a escassa expressão artística negra na cidade. Pelópidas Thebano faz parte desse novo momento. A estética e a composição do painel nos remetem a algo que é retomado e contradiz a visualidade a que fomos acostumados, trazendo esse novo ponto de vista sobre a cidade e seus habitantes. O trabalho de Thebano é um marco físico e simbólico para o Museu, mas, sobretudo, para a história da arte no RS, e para ele mesmo como artista, pois estabelece um vínculo formal com a cidade através da inserção de sua obra na paisagem de um importante espaço público, reiterando a existência da população e da classe artística negra em Porto Alegre, efetuando o devido registro da obra junto ao acervo do município. O continente africano é tema recorrente em suas obras, o que revela a perpetuação da sua ligação com a ancestralidade, trazendo para a atualidade e para as futuras gerações o contato com a cultura de matriz africana, com suas riquezas, seus ensinamentos e reflexões sobre a história da África, identidade negra e a conscientização do valor e da riqueza cultural dos negros, contribuições que são perceptíveis em seus trabalhos em pintura. Thebano é considerado uma das principais referências da arte negra no Rio Grande do Sul. A última exposição virtual com suas obras “Raiz que se alastra”, de 03 de novembro a 20 de novembro, que contou com curadoria da artista plástica Mitti Mendonça, teve como objetivo abordar a produção artística e a trajetória de Pelópidas Thebano, artista plástico porto-alegrense, já consolidado nas artes plásticas brasileira e afro-brasileira. Em 2002, foi doada para as referidas instituições museológicas a pintura virtual “Raiz que se alastra”, criada em 2013. O artista plástico Pelópidas Thebano (Pelópidas Thebano Ondemar Parente) faleceu em 04 de janeiro de 2022, em Porto Alegre, RS, Brasil. Referências RAMOS, Jeanice Dias; VARGAS, Pedro Rubens Nei; SOUZA, Vinícius Vieira. Museu De Percurso Do Negro Em Porto Alegre, Etapa IV – Painel Afro-brasileiro. Ed. Porto Alegre, RS, 2015. SALAINI, Cristian Jobi. “O negro no campo artístico”: uma possibilidade analítica de espaços de solidariedade étnica em Porto Alegre/RS. In : SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (org.). RS Negro – cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre, RS: Edipucrs, 2008. SOUZA, Vinícius Vieira de Souza. Artes Visuais de referência afro-brasileira no espaço público de Porto Alegre. In : MATTOS, Jane Rocha de. Museus e Africanidades . Porto Alegre, RS: Edições Museu Júlio de Castilhos, 2013. THEBANO, Pelópidas Ondemar Parente. Entrevista, Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre . Depoimento oral. Porto Alegre, 2010. THEBANO, Pelópidas. Exposição Raiz que se alastra . 2021. Curadoria e texto curatorial de Mitti Mendonça. [ S. l. ], 2021. Virtual.