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Bacia do Mont'Serrat

Atualizado: 24 de jul. de 2023





Figura 1: Mapa da Bacia do Mont’Serrat, Porto Alegre/RS – 1916

Fonte: Elaboração de Daniele Machado Vieira sobre Mapa de Porto Alegre/RS, 1916 (IHGRGS, 2005)


Até meados do século XX – e talvez até as décadas de 1980/90 – a área do atual bairro Mont'Serrat era um antigo território negro conhecido como Bacia do Mont'Serrat. Seus primeiros registros datam da primeira década do século XX. Conforme o historiador Sérgio Franco, em 1913 eram anunciados terrenos para venda na área (2006, p. 279).

Sanhudo (1975), antigo cronista da cidade, narra a existência de moradores na área antes de 1910, considerado o início oficial do bairro com a construção da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora. Com olhar estigmatizado e depreciativo, ele relata que “antes disso já havia moradores aí nesses valões da antiga rua Álvaro Chaves, hoje Arthur Rocha” (SANHUDO, 1975, p. 111), apontando a Rua Arthur Rocha como a primeira via ocupada. É simbólico que este antigo território negro, na época ocupado majoritariamente por famílias negras, tenha tido como nome do seu primeiro logradouro uma personalidade negra da segunda metade do século XIX. Arthur Rodrigues da Rocha (1859-1888) era um dramaturgo negro, rio-gradino (SANTOS, 2009, p. 56), que na virada do século XIX-XX tinha suas peças encenadas nos festejos da Sociedade Floresta Aurora.

Em 1916 foi quando a área da Bacia do Mont’Serrat apareceu pela primeira vez em um mapa, tendo como limites a Rua Arthur Rocha a leste, a Rua Nova York (atual Av. Cel. Lucas de Oliveira) a oeste, a Estrada da Pedreira (hoje a Av. Plínio Brasil Milano) a norte e a Rua Anita Garibaldi ao sul. Esse quadrilátero engloba uma parte considerável da área que, posteriormente, será considerada a Bacia do Mont’Serrat, a qual estendia-se da Av. Plínio Brasil Milano até Rua Pedro Ivo (no sentido norte-sul) e da Rua Pedro Chaves Barcelos até a Av. Mariland (na direção leste-oeste). Todas essas ruas podem ser consideradas como “bordas” da Bacia por estarem em um plano elevado em relação a sua área interna.

O Mapa de 1916 mostra que nessa época a área do Mont’Serrat era o limite desta parte da cidade, havendo um amplo espaço em branco (a princípio não urbanizado) na face sul e leste. Na área em branco ao sul, posteriormente irão se localizar os bairros Bela Vista e Petrópolis.

O cronista Sanhudo (1975) narra a marcante presença negra na região, conferindo, contudo, uma conotação desqualificadora ao grupo, descrevendo os moradores como “despreocupados” e “estirados em barrancos”, mencionando-os como “filhos de Cam” (em uma leitura bíblica, aqueles que deram origem ao continente africano).

Em contraponto às descrições depreciativas estão as narrativas dos moradores e frequentadores do bairro, como a de Dona Shirley Machado, neta e filha de lavadeiras, ainda residente na área. Os antigos moradores relatam a existência de diversas bicas d’água espalhadas pelas ruas do bairro. Próximo às bicas, acumulavam-se as tinas de lavar roupas, nas quais as mulheres exerciam o ofício, passado de geração em geração. D. Shirley relembra o ofício das mulheres de sua família, narrando a existência de uma bica e diversas tinas de lavar roupa na Rua Fabrício Pilar (SANTOS, 2010, p. 110). Ela conta que havia também tias costureiras, cozinheiras, especialistas em doces, destacando, contudo, que a mãe não a ensinou o ofício de lavadeira, pois quis que estudasse, rompendo o ciclo de trabalho ligado às atividades domésticas.

Repleta de casas de batuque, a Bacia do Mont'Serrat era considerada lugar de batuqueiro forte, conforme as narrativas colhidas por Pólvora (1996, p. 165). Uma das entrevistadas da fotógrafa Irene Santos revela a existência de diversos terreiros em uma mesma rua: “Na Rua Comendador Rheingantz havia sete casas de religião, de orixás fortes. Na frente da casa dos meus pais morava o Pai Joãozinho do Bará, muito conhecido na cidade” (SANTOS, 2010, p. 116). Até os anos 1980/90 muitas outras casas religiosas povoavam a paisagem do bairro, com gerações de batuqueiros sucedendo-se ali, como Mãe Laudelina do Bará pertencente à terceira geração de uma família de santo (PÓLVORA, 1996, p. 165).

A forte religiosidade negra na área é um dos motivos do termo Bacia na denominação do bairro. Para os adeptos da religião de matriz africana, “bacia” refere-se ao pertencimento dos terreiros do bairro a uma mesma matriz/linha religiosa (RECH, 2012, p. 31), conformando uma origem espiritual comum, uma mesma procedência. Crê-se, ainda, que a forma côncava do relevo, formado por uma parte baixa ao centro ladeado por partes altas, apresentando o formato semelhante ao de uma bacia (objeto), teria levado a área a ser popularmente batizada de Bacia do Mont'Serrat.

As memórias sobre o bairro também remetem aos blocos de carnaval, como o “Aí vem a Marinha” e “Não vai pra ti”, além de grandes bailes promovidos por Júlio Ferreira, Seu Pretinho. Os antigos moradores orgulham-se dos piqueniques dominicais, momentos de sociabilidade das famílias negras, assim como de terem visto crescer um dos grandes jogadores do Grêmio, o futebolista Roger Machado, nascido e criado no bairro.

O território negro Bacia do Mont’Serrat ao qual nos referimos já não existe mais, devido, em boa medida, à grande transformação social e econômica do bairro nas últimas décadas. Mas ainda há uma presença negra que resiste à vertiginosa verticalização e elitização do bairro.






Referências


FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006.


PÓLVORA, Jacqueline Britto. Na encruzilhada: impressões da socialidade batuqueira no meio urbano de Porto Alegre/RS. In: LEITE, Ilka Boaventura (org.). Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996. p. 159-175.


RECH, Tiago Bassani. Casas de religião de matriz africana em Porto Alegre:

territorialidades étnicas e/ou culturais a partir da antiga Colônia Africana. 2012. 125

f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em

Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, Porto Alegre, 2012.


SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Editora Movimento: Instituto Estadual do Livro, 1975. 2 v.


SANTOS, Irene (org.). Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: [s. n.], 2005.


SANTOS, Irene (coord.) et al. Colonos e Quilombolas: memória fotográfica das

colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s. n.], 2010.


SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as cortinas: Representações étnico-raciais e pedagogias do palco no teatro de Arthur Rocha. 2009. 144 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. Disponível em: https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM103.pdf. Acesso em: 27 mar. 2017.


VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023.


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