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AFRICANOS LIVRES

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Imagem meramente ilustrativa - feita por IA - por não haver registro destes AFRICANOS LIVRES citados no verbete a seguir.

Em 30 de junho de 1857, por despacho de um juiz de direito de então, foi remetido à Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre o boçal Antônio, de nação Cabinda. Boçal era nome que se dava aos negros africanos recém-chegado e ignorantes a respeito dos costumes e dos modos de viver na sociedade escravocrata brasileira.


Situação similar foi vivida por Manoel Congo, remetido à Santa Casa da capital, em 1861. 


Dez anos antes, em 1851, como apontam pesquisas realizadas pelo historiador Vinicius de Oliveira, esta mesma instituição de caridade já havia recebido os 24 primeiros africanos livres legalmente reconhecidos de que se tem registro no Rio Grande do Sul.


A categoria “africanos livres” era concedida a africanos e africanas que entraram no Brasil após 7 de novembro de 1831 (Lei Feijó), devido à proibição do comércio atlântico de escravizados. Essa lei proibiu a importação de escravizados, sendo declarados livres aqueles que haviam sido trazidos ao país após a sua instituição. Deste modo, a nomenclatura “africano livre” vai se juntar às demais formas de identificar a população negra no século XIX: escravos, livres ou libertos. 

No entanto, pode-se dizer que a experssão “africanos livres” ou “emancipados” era um eufemismo para conceituar uma categoria intermediária entre escravidão e liberdade. 


Homens e mulheres enquadrados nessa perspectiva não seriam imediatamente postos em liberdade nem tampouco retornariam ao continente africano, mas sim deveriam cumprir uma espécie de pedágio ou cautela, trabalhando um determinado número de anos para o estado (arsenais da Marinha ou de Guerra, fortalezas, fábricas, casas de correção, entre outros) ou concessionários particulares como as Santas Casas de Misericórdia, podendo em alguns casos receberem uma ínfima remuneração. 


A justificativa era a necessidade de adaptação ao estado escravista brasileiro antes da concessão da liberdade plena.

A entrada desse grupo no estado e na capital em particular vai colaborar de forma decisiva para a paulatina mudança demográfica no seio da população negra. 


Até então, vislumbrava-se um quadro populacional majoritariamente de origem banta, responsável, com algumas exceções, pelas manifestações religiosas relacionadas às congadas e à coroação de reis e rainhas africanas, expresões estas ligadas às irmandades católicas, em especial a do Rosário, numa espécie de catolicismo de inspiração africana.


Provavelmente, a origem dessas tradições de cunho religioso pode ser vista no distante ano de 1485, antes da ocupação portuguesa do Brasil, quando o manicongo – rei do Congo - chamado Nzinga-a-Nkuwa - recebeu o batismo cristão, mudando o nome para João I, homônimo do soberano português. 


Como pensa Laurentino Gomes, esse fato foi a oportunidade para o nascimento de uma peculiar forma de catolicismo, até hoje vigente nessa região da África, que mistura crenças e rituais de origem católica com outros de raiz local, ancestral e genuinamente africana. 


No Brasil a situação de escravizados, com quase toda a certeza gerou novos códigos de sociabilidade cimentando uma identidade negra em terras estrangeiras.


A partir de 1831, entretanto, nota-se uma maior diversidade étnica entre os grupos que irão compor a população negra no RS, em particular nas cidades de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. Não por acaso, localidades que apresentam ligação fluvial com o único porto marítimo do estado, região onde ocorrem apreensões de transporte clandestino de africanos.


Diferente da maior concentração de povos negros na capital, a maioria oriunda da costa oeste da África Central – macrorregião que compreende Angola e Congo – de cultura banta, os novos entrantes negros eram originários das regiões acima da linha do equador, conhecida por Costa do Ouro, Costa dos Escravos ou Costa da Mina, com predominância de linhagens de cultura iorubá.


Tal inflexão no quadro demográfico da população negra local, lento, mas em avanço contínuo, vai trazer mudanças significativas para o processo de lutas pela abolição, novas sociabilidades e a abertura para outras perspectivas religiosas, como é o caso do batuque de nação.


Na atualidade, o batuque representa parte importante da identidade negra porto-alegrense, surpreendendo por sua força nas manifestações religiosas negras no estado “mais europeu” do país. 


Pode-se pensar que as marcas profundas da presença negra na moldagem de territórios nos pós-abolição - e mesmo a projeção nos anos vindouros da força da cultura e do movimento negro na cidade - deve-se sobremaneira à diversidade cultural e étnica dos povos negros que aqui fincaram raízes, processo histórico em que, sem dúvida, os africanos livres tiveram papel destacado.


Referências:


OLIVEIRA, Vinicius Pereira. Um pátio étnico: africanos livres na Santa Casa de Porto Alegre. Racismo, relações de poder e história negra em Porto Alegre: séculos XIX-XX/Centro Histórico-Cultural Santa Casa, org. José Rivair Macedo, Paulo Roberto Staudt Moreira, Vera Lúcia Maciel Barroso- Porto Alegre: Evangraf: ISCMPA,2023.


Histórias de batuques e batuqueiros [livro eletrônico]: Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. Autoria de Vinicius Pereira de Oliveira, Denis Pereira Gomes, Jovani de Souza Scherer – publicado em Pelotas. Edição dos Autores, 2021.


GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1 – 1 ed. – Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.


 
 
 

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