Banda Jazz Espia Só
- Marcelo da Cruz Côrtes

- 16 de out.
- 5 min de leitura

A música negra é como uma árvore cheia de galhos e frutos. De acordo com essa abordagem histórica, dentre estes galhos e frutos temos a constituição de raízes que nos trazem a mobilidade e a diversidade da música brasileira, gaúcha e porto-alegrense. A riqueza da música gaúcha negra, muitas vezes desconhecida do grande público gaúcho, já despontava no começo do século XX, quando Porto Alegre era marcada por uma cena musical que movimentava a vida noturna. Como parte desta cena, tínhamos clubes, casas noturnas, bares e cabarés - como o Cabaret Ibá, o Moulin Rouge, o Dancing Oriental - e orquestras da noite - como a do Noé Guedes, a Orquestra Concórdia, a Paulo Coelho e Orquestra, a Jazz Futurista, entre várias outras que ambientaram o contexto com sua sonoridade.
Identificando todas estas formações musicais, pode-se afirmar que, pautada pela alternância entre períodos curtos e longos, a relação entre o jazz e a noite de Porto Alegre já é centenária. Um dos gêneros musicais com origem negra norte-americana, o jazz esteve presente nos melhores cafés da Rua da Praia na década de 1920, embora consumido e apropriado por uma elite majoritariamente branca.
Sob a influência proporcionada pelo rádio e pela indústria do disco, ambos ainda em fase inicial, surgiram bandas locais jazzistas como a Espia Só, a Royal, Guarany e a Cruzeiro. A experiência foi uma representação de um certo hibridismo musical que mesclava os sons da negritude norte-americana com as raízes musicais latino-americanas. A Espia Só, nesse contexto, foi o primeiro, ou um dos primeiros, grupos de jazz formado prioritariamente por músicos negros no Sul do Brasil, tendo essa prioridade para músicos negros não enquanto regra, mas como característica.
A Jazz Espia Só era um grupo instrumental criado, em Porto Alegre, em 1923, sob a liderança do flautista Albino Rosa. Inicialmente o grupo tinha o nome de Regional Espia Só, tendo em sua formação Albino Rosa (direção musical e flauta), Binga (1º violão de seis cordas), Marino dos Santos (cavaquinho e bandola - que é uma espécie de bandolim), Paulino Mathias (2º violão), Veridiano Farias (violino), Severo (ganzá) e Herald Alves (caixa clara).
Albino Rosa, ao convidar alguns amigos que tocavam juntos após suas jornadas de trabalho, passaram a formar um conjunto musical. Curiosamente o nome do grupo surgiu a partir de uma música carnavalesca de sucesso público no Rio de Janeiro na época, que destacava a expressão popular “espia só”. Até 1926 foi chamado de Regional Espia Só. Nessa temporada, o grupo apresentou-se em ensaios das sociedades carnavalescas e, em diversas oportunidades, realizava de três a quatro serestas por semana, execuções musicais praticadas em espaços fechados, numa mistura de sarau e serenata.
Naquele contexto de época, as serestas foram muitas vezes perseguidas e até proibidas pela polícia, que invariavelmente prendia músicos e envolvidos. Era preciso toda articulação para se reunir de surpresa, escondidos e com a máxima discrição para poder ensaiar.
Bóris Fausto denuncia a criminalização que a música negra e sua cultura sofriam, em especial naquelas primeiras décadas do século XX, sendo a acusação prescrita nas leis de “vadiagem”, que funcionava como um conceito aberto, posição que abarcava muitos modos de vida e corpos, na busca por uma higienização da cidade.
Um acontecimento importante no Regional Espia Só deu-se em 1926, quando a cidade de Porto Alegre recebeu a visita do celebrado conjunto Oito Batutas, dirigido por Pixinguinha. Na ocasião, surgiu o convite para que o Regional tocasse durante vinte dias na Exposição do Parque Menino de Deus. As modificações e influência geradas pela visita dos Oito Batutas à cidade levaram à mudança do nome do grupo que de Regional passou a se chamar Jazz Espia Só, nos mostrando uma relação de uma cultura regionalizada que se internacionaliza.
Albino Rosa, o líder do Espia Só, era um negro que proporcionava ao grupo uma estética situado no ritmo quente do sincopado, estilo que viria mais tarde a se tornar popular.
O grupo posicionou-se no seleto rol do jazz brasileiro com uma marca de jazz gaúcho, praticado por músicos e artistas com origem na população negra. Um movimento importante que marca a diversidade musical tendo se conectado com o mundo sem perder suas regionalidades e singulares.
Pixinguinha acabou ajudando o grupo gaúcho a construir intermediações musicais e culturais entre Rio de Janeiro e Porto Alegre. No Rio, o jazz popularizava-se naquela época, misturando-se à cultura popular, dado que o jazz é por si uma fusão rítmica, onde os músicos podem solar individualmente e, em seu ato de improvisação, encontrarem-se neste espaço das sonoridades para construir uma harmonia musical.
Nestas trocas, podemos dizer que, diante desta influência, houve inclusive uma troca de instrumentos. Albino Rosa passou a tocar sax alto e flauta; Oswaldino Peixoto, o trombone de pisto, que mais tarde ficaria conhecido como trombone de vara; Heraldo Alves e Marino dos Santos, sax alto e soprano; João Luiz tocava pistão na bateria, instrumento que até então era desconhecido dos músicos brasileiros. Armindo Alves, tocava banjo; Luiz Alves e Severiano de Souza, baixo-tuba.
Essas modificações deram forma à época de ouro do Jazz Espia Só. O grupo não conseguia dar conta de toda a demanda que chegava do interior e até de Santa Catarina. Os convites vinham dos clubes, casas e redutos populares negros existentes na época, como por exemplo do Clube Caixeiral, do Clube do Comércio, da Sociedade Philosofia e da Sociedade Germânia.
As apresentações traziam um repertório eclético com choros, polcas, valsas, havaneiras, tangos, schottichs, marchas e também o chamado charleston que era um ritmo daqueles anos 1920. Também tocavam músicas populares de carnaval nas festas carnavalescas e nos blocos de rua. A Espia Só era vista como uma orquestra porto-alegrense, uma “jazz band”.
O sucesso do grupo chegou a tal ponto que, mesmo composto por vários músicos negros, a Espia Só era aceita nos ambientes mais elitizados, como no Clube Germânia, que não admitia negros nas suas festas e atividades sociais.
Nesse aspecto, a Jazz Espia Só deve ser lembrada e incluída no grupo dos artistas que romperam com as discriminações vigentes, ocupando espaços e furando os bloqueios existentes à presença da negra e do negro nos espaço públicos de Porto Alegre, indo ocupar um lugar de destaque na memória das lutas antirracistas.
Albino Rosa faleceu em 1982 e Paulino Mathias, em 1977. Depois disso, alguns remanescentes do Espia Só reuniram-se pontualmente para relembrar os velhos tempos de resistência e sucesso do grupo, que deixou de existir.
Pesquisa de imagem: Leandro Machado
Referências:
Reportagem de Marcello CAMPOS. Blue Jazz Bar: espaço garantido para o jazz na vida noturna de Porto Alegre. Jornal do Comérico. Publicada em 28 de Novembro de 2024. Página: https://www.jornaldocomercio.com/especiais/reportagem-cultural/2024/11/1181339-blue-jazz-bar-espaco-garantido-para-o-jazz-na-vida-noturna-de-porto-alegre.html.
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Jazz Espia Só. Dados Históricos e Artísticos. 2021. Página: https://dicionariompb.com.br/grupo/jazz-espia-so/.
Artigo de Petrônio DOMINGUES. De Nova Orleans ao Brasil: o jazz no Mundo Atlântico. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 40, nº 85, 2020 http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472020v40n85-09.
Artigo de Arthur de Farias com o título: Série As Origens – Parte XXII. 17 de Julho, 2020. https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/arthur-de-faria-serie-as-origens-parte-xxii.
HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
LABRES, Filho, Jair Paulo. Que jazz é esse? As jazz-bands no Rio de Janeiro da década de 1920. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2014.
LUNA, Paula. Fenômeno esquecido da época romântica da música popular: a Jazz Espia Só. 30/10/2011. Página: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-musica/3306676
NETO, Nicolau Clarindo Paulo. SONORIDADES MODERNAS EM TRÂNSITO: A ORIGEM DAS JAZZ BANDS CATARINENSES E SUAS TRILHAS DE 1920 A 1940.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, subárea Teoria e História, do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em cumprimento aos requisitos necessários à obtenção do grau acadêmico de Mestre em Música. Florianópolis, SC, 2021.






















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