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Foto do escritorJoão Otávio Rodrigues e Jacqueline Custódio

Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre

Atualizado: 14 de out.




A primeira instituição denominada Santa Casa de Misericórdia foi criada em Lisboa, no ano de 1498. A partir dela, uma série de instituições semelhantes passaram a existir em Portugal e em territórios que estavam sob domínio português, localizados na Ásia, África e América. Assim surgiram e foram construídas as Casas de Misericórdia e suas irmandades. Tais instituições recebiam incentivo ou até mesmo eram criadas pelo Estado, pela Monarquia. Na intenção de trilharmos o caminho percorrido para o nascimento da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, necessitamos direcionar nossos olhares para os momentos finais do século XVIII, pois até o ano de 1795, a recém fundada, em Porto Alegre, ainda não constava com um espaço propriamente dedicado ao trato dos enfermos locais.


A referência de amparo aos doentes e necessitados era o albergue em que morava uma mulher negra, chamada Angela Reiúna, localizado na Rua Pecados Mortaes, hoje Rua Bento Martins. Juntamente com Antônio José da Silva Flores e Luiz Antônio da Silva, Ângela, além dos serviços de saúde, levantava donativos e oferecia o preparo de refeições aos mais pobres. A partir disto, a primeira enfermaria da cidade foi construída, fruto da organização destes moradores que, de forma precária, atendiam doentes na região. A enfermaria era feita de tijolos das inúmeras olarias da cidade, servindo de legado ao projeto do Irmão Joaquim Francisco do Livramento que, em 1802, foi a Lisboa para pedir autorização e apoio na criação da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.


A Santa Casa foi o primeiro hospital do Rio Grande do Sul. O início de sua construção se deu em 1803 e sua irmandade foi criada em 1814, sendo ela responsável pela administração do hospital, escrita do estatuto e demais atividades burocráticas. Os primeiros pacientes do hospital começaram a ser recebidos em 1º de janeiro de 1826. O tempo entre o começo da construção e o início dos atendimento aos pacientes foi marcado por uma série de disputas em torno do espaço. Com a morte do então governador interino da província, Brigadeiro Francisco João Rocio, houve a tentativa de instalar doentes militares no hospital, que seria o primeiro da então Vila de Porto Alegre e era destinado, principalmente, aos enfermos pobres, escravizados e presos. Estas diferenças de perspectiva em relação ao espaço foram responsáveis por esta lacuna temporal.


Convém lembrar que, no século XIX, os hospitais não tinham a cura como objetivo principal, mas eram um misto de caridade e filantropia, que incluía, além do tratamento hospitalar, o encarceramento, auxílio aos necessitados e serviços funerários. Isso porque o melhor tratamento para doenças era o recebido em domicílio, sendo o hospital reservado àqueles que não possuíam casa. Uma das funções principais da instituição ao longo do XIX foi servir enquanto Casa da Roda, prática que já era comum em outros locais e se iniciou em Porto Alegre a partir de 1837. Neste ano, a Santa Casa recebeu a incumbência legal de criar e manter os infantes expostos, crianças recém-nascidas deixadas na instituição para serem criadas ou adotadas. A referência mais conhecida desta prática é a Roda dos Expostos. Grande parte das pessoas incumbidas pelos primeiros cuidados dessas crianças eram mulheres, em sua maioria negras, que trabalhavam enquanto amas de leite e se responsabilizavam pela criação e tutela dos expostos.


Outra das atribuições da instituição era a responsabilidade sobre os doentes mentais, para os quais havia o Asilo dos Alienados, que durou até 1884, quando foi fundado o Hospital Psiquiátrico São Pedro. As alegações de pacientes entrando no hospital com psicopatologias eram muitas e seus registros se iniciam a partir de 1834, a alta demanda criou a necessidade de um espaço específico para estes atendimentos pois na década de 1870 o local já não tinha mais as condições necessárias para os pacientes. Neste sentido, também convém lembrar que no período escravocrata, uma série de cartas de alforria eram escritas e direcionadas à Santa Casa alegando necessidade de internação de escravizados, e por meio delas também havia o pedido para que as responsabilidades financeiras dos tratamentos passassem a ser da instituição, como mostra a carta de alforria de Eduarda, onde consta que: “[...] apesar de já se achar a mesma melhor daquele incômodo, peço a direção da mesma para Sta Casa de Misericórdia, a fim de ser ela aplicada ao serviço do estabelecimento e receber o serviço do estabelecimento, ficando eu exonerado de quaisquer despesas do seu tratamento quer anteriores quer posteriores [...]”.


Temos outro documento, este escrito por Luiz Alves de Oliveira Bello, onde ele alega que um de seus escravizados, chamado Protázio, era “doido e pobre” e pede que o homem seja recolhido pela Santa Casa para ser tratado. Havia também casos em que os senhores pagavam as custas do tratamento dos escravizados, que poderiam variar de acordo com a idade e tempo de permanência do doente, sendo que a faixa etária média dos internados era de 13 a 30 anos. Ainda, o hospital possuía em seu terreno um cemitério para enterrar os membros da irmandade e indigentes do hospital. A partir de 1850, a instituição passou a enterrar os escravizados e os livres, fora da cidade, onde hoje situa-se o bairro Azenha.


Conforme foi previamente apontado, para além de pacientes, os escravizados aparecem nos registros também como força de trabalho, assim como muitos livres e libertos. Outros eram antigos internados, que se somaram àqueles que foram comprados, alugados ou doados à Santa Casa. Quanto às atividades praticadas, atuavam como serventes nas enfermarias, na botica, no cemitério, na cozinha ou lavanderia, mas também podiam ser especializados, por exemplo, cuidando da sangria, já que era prática utilizada em grande escala nos navios que traziam escravizados da África. Em razão desta variedade de sujeitos e funções desempenhadas chama atenção o grande número de pessoas negras dentro da instituição. Tais indícios mostram que ao longo de sua história a instituição foi marcada por uma forte presença negra em diferentes partes de sua estrutura, como é o caso de Aurélio Veríssimo de Bittencourt, que na década de 1890 ocupava uma cadeira na direção do hospital. Assim, a presença negra na instituição era fundamental, pois estava diretamente ligada com a cura e/ou alívio dos sintomas e dores das pessoas internadas. E, assim, a Santa Casa constituiu-se como espaço de mobilidade social para estes indivíduos, que deixaram seus legados, demonstrando sua importância no que diz respeito às práticas de cura, cujas trajetórias são fundamentais para que se entenda a própria instituição e seus significados para Porto Alegre.


Referências

ALFORRIA Eduarda. DOC83 - Alforria Eduarda, 15.12.1863. Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1863].

ALFORRIA Protázio. DOC1- Alforria Protázio, 07.11.1853. Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1853].

BRIZOLA, Jaqueline Hasan. Cativeiro e moléstia: a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o perfil de escravos enfermos no contexto do fim do tráfico negreiro no Brasil (1847-1853). 2010. Monografia (Licenciatura em História) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

HISTÓRIA CHC Santa Casa. In: CHC. [S. I.], [20--?]. Disponível em: https://www.chcsantacasa.org.br/chc-santa-casa/historia/#:~:text=Localizada%20no%20Alto%20da%20Bronze,natal%2C%20e%20em%20Porto%20Alegre. Acesso em: 3 nov. 2022.

LEAL, Noris Mara Pacheco Martins. Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre: 196 anos de amor à vida. Revista Acta Médica Misericordiae, [S. l.], v. 2., n. 2., p. 68-71, 1 dez. 1999. Disponível em: http://www.actamedica.org.br/publico/noticia.php?codigo=44&cod_menu=44. Acesso em: 3 nov. 2022.

TOMASCHEWSKI, Cláudia. Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva: A distribuição de assistência a partir das Irmandades da Santa Casa de Misericórdia nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c. 1847 - c. 1891. 2014. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.


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