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Foto do escritorPedro Vargas

Mercado Público Central de Porto Alegre – “Mercado”

Atualizado: 14 de out.



Construído para ser centro de compras e abastecimento de alimentos da cidade, o Mercado de Porto Alegre foi erguido entre 1867 e 1869 por mão de obra negra escravizada. Inaugurado em 1870, era originalmente um quadrilátero formado por um piso e quatro torreões nas extremidades e a execução da obra exigiu o aterramento de parte do Lago Guaíba. Sua forma atual foi realizada em 1912 com a incorporação de um segundo pavimento, momento em que foram elaborados nas suas fachadas os elementos decorativos que dão à edificação o aspecto neoclássico que ostenta até os dias atuais. Também é importante destacar que, ao longo da sua história, o velho mercado sofreu quatro incêndios: o primeiro em 1912 de grandes proporções, outros dois em 1976 e 1979 e, o último, em 06 de julho de 2013, que consumiu quase a metade do segundo pavimento. O prédio é tombado na condição de monumento histórico desde 1979, e passou por uma restauração entre 1992 e 1997 que trouxe ao edifício a cobertura que possui hoje em dia e a retirada de uma banca que ocupava o centro do mercado deixando livre o cruzeiro proporcionado pelo cruzamento dos corredores advindos das quatro portas que caracterizam a edificação.


No entanto, para falar das profundas relações estabelecidas entre o Mercado e a comunidade negra será necessário um exercício para deslocar o eixo de análise, que antes repousava na natureza do objeto como elemento determinante do conceito de patrimônio, ou seja, deixar de ver apenas o Mercado, prédio histórico e elemento marcante na arquitetura do Centro, para prestar atenção nas relações que se estabelecem entre o Mercado e os diferentes sujeitos – da comunidade negra – no tempo e no espaço. Nesse sentido, se vai recorrer à relação patrimonial com o Mercado Público que firmam os grupos de sacerdotes de religiões afro-brasileiras e os militantes do movimento negro.


A presença cotidiana de Yalorixás e Babalorixás no Mercado está associada à Tradição Bará do Mercado – registrada como patrimônio imaterial de Porto Alegre. Essa tradição é viva porque se retroalimenta da energia advinda da prática (ritual do passeio e ofertas jogando-se moedas ou balas de mel) de reverenciar e buscar o axé do orixá. É vista como um símbolo da resistência ao apagamento da memória negra. A pesquisa de Vargas (2011) destaca o depoimento de um sacerdote:


Com certeza ali tem algo mais do que simples espaço comercial. É uma construção (o mercado) de negros, a gente compreende que essa energia (axé) do Bará, que foi enterrado ali pelos escravos ou pelo Príncipe Custódio, é também do próprio negro, é uma história de resistência [...]. Quando o filho sai do terreiro, primeiro contato com o mundo é a relação com o mercado, que é símbolo da resistência do nosso povo, a memória de toda a contribuição dada pelo povo negro para a sociedade gaúcha.


A ideia de resistência ao apagamento da memória está relacionada à longevidade da prática religiosa no interior do Mercado. Outro sacerdote complementa:


Nasci numa casa de religião, Oió, e desde os sete anos de idade ia ao Mercado fazer obrigação. Nasci em 1935, minha mãe em 1915 e minha avó em mil oitocentos e pouco e todas iam ao Mercado, iam defendendo nossa raça e querendo fazer as coisas para o negro. O Bará do Mercado é nossa tradição de luta, de resistência e que não pode se perder.


Ponto que ainda merece destaque é o fato de que até o processo de restauração do Mercado (1992-1997) a prática de reverenciar Bará era pouco conhecida para além dos próprios sacerdotes. A visibilidade desta prática trouxe a necessidade de construir uma narrativa voltada para a sociedade mais ampla sobre as origens do assentamento ao orixá Bará no cruzeiro que marca o centro do Mercado. De maneira sintética, a responsabilidade por assentar o orixá é dada aos trabalhadores escravizados que trabalharam na construção do prédio entre 1867 e 1869 ou ao Príncipe Custódio, personagem complexo que merecerá um verbete próprio. A mão do Príncipe vai conferir um ato nobre à formação das religiões afro-brasileiras em Porto Alegre.


A prática ritual e as versões sobre o assentamento de Bará são fontes para se pensar sobre os territórios e os deslocamentos das populações negras no tempo e no espaço. O ritual do Passeio que é a prática de se apresentar os novos sacerdotes ao orixá, com algumas variações, contempla a entrada dos grupos de religiosos pela porta do Largo Glênio Peres, o ritual no centro do Mercado, a saída pela porta da Avenida Júlio de Castilhos, antiga Doca do Peixe e paisagem do Guaíba, como reverência a Oxum, a entrada pela porta da Avenida Borges de Medeiros e a saída pela Praça Parobé, lembrando a peregrinação com destino à Igreja do Rosário dos Pretos. Este trajeto pode ser comparado à grande circulação de negros na área do Mercado no século XIX.


Já Custódio, que faleceu em 1935, é apontado por realizar e orientar outros assentamentos em pontos diversos da cidade. O príncipe residia na Cidade Baixa e, segundo relatos de sacerdotes, até os anos 1940, outros religiosos como Antônio de Oxum, Chico de Iemanjá, Paulino de Ogum e Idalino de Ogum assentaram sete Barás em Porto Alegre sendo eles colocados na Cidade Baixa; na Colônia Africana; na Bacia do Montserrat; na Ponta do Guaíba; e na região da Usina do Gasômetro.


O outro grupo aqui citado, os militantes do movimento negro, desenvolveu também uma relação especial com o Mercado. Estes destacam o segundo piso, por ter sido local de resistência e oposição ao regime militar (1964-1985), onde ficavam instaladas livrarias e outros equipamentos culturais, sendo ainda lugar de reuniões e nascimento do Movimento Negro Unificado (MNU). Alguns bares e outros pontos são vistos como enclaves negros e continuação da presença negra naquela área do centro, por exemplo, o grupo de estivadores que trabalhava no porto da cidade.


O Mercado é entendido como o centro de onde se irradiam todas as manifestações e reivindicações do povo negro. Por ter sido construído por mão de obra compulsória ou escravizada, é percebido como um monumento negro por ser uma obra que espelha a contribuição do negro para a cultura gaúcha.


O local é, talvez, o patrimônio edificado mais importante da capital. Concorda-se com o antropólogo Antônio Arantes quando ele diz que espaços edificados exercem significativo caráter reflexivo sobre a ação social, ou seja, ao encaminhar marchas e ações saindo do Mercado, o movimento negro incorpora às suas reivindicações e demandas a história e a importância espaço para a comunidade negra.



Referências:


VARGAS, Pedro Rubens. A relação patrimonial na restauração de bens culturais: o mercado de Porto Alegre e os caminhos invisíveis do negro. Curitiba: Appris, 2017.


LORENTZ, Kátia B.; GIOVANAZ, Marlise. Relatório de Pesquisa Mercado Público Central de Porto Alegre Parte I. Porto Alegre: SMC/PMPA, 2003


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