top of page

78 resultados encontrados com uma busca vazia

  • Rua Arthur Rocha

    L ocalizada na antiga Bacia do Mont'Serrat, hoje apenas Bairro Mont'Serrat, a Rua Arthur Rocha imortaliza o dramaturgo e teatrólogo negro Arthur Rodrigues da Rocha. Datada do início do século XX, foi a primeira via a ser ocupada na região, conforme os registros do cronista Sanhudo (1975, p. 111). Referindo-se às origens do Arraial do Mont'Serrat, Sanhudo relata que a primeira leva de moradores teria ocorrido antes de 1910, ano considerado como o início da ocupação do bairro. Em suas palavras: O bairro, ou melhor, o arraial, começou realmente com a construção da igreja de Nossa Senhora da Auxiliadora, aí pelo ano de 1910 [...]. Mas é verdade que antes disso já havia moradores aí nesses valões da antiga rua Álvaro Chaves, hoje Arthur Rocha (SANHUDO, 1975, p. 111). No Mapa de Porto Alegre de 1916, primeira vez que a área do Mont’Serrat aparece em um mapa da cidade, a Rua Arthur Rocha já está nomeada, sendo o limite leste da área (ver mapa no verbete “Bacia do Mont'Serrat”). Nascido na cidade de Rio Grande, Arthur Rodrigues da Rocha ou, simplesmente, Arthur Rocha, como se autodenominava, teve uma vida breve e uma longa produção intelectual. Filho de José Rodrigues da Rocha e Maria das Dores Rocha, uma família pobre, aos 13 anos muda-se para Porto Alegre para estudar. Em sua breve existência (1859-1888) foi dramaturgo, ator, jornalista, contista e ativista político, produzindo 14 peças teatrais – sete delas publicadas em três volumes intitulados Teatro de Arthur Rocha , conforme levantado por Isabel Silveira dos Santos (2009, p. 56), pesquisadora de sua obra. Redator dos jornais porto-alegrenses O Mosquito (1874), O Colibri (1877) e A Lente (1877), Arthur Rocha compôs o distinto grupo de intelectuais negros livres do final do século XIX, que tomaram posições radicais na crítica à sociedade da época e que encontraram na imprensa uma saída para debater os assuntos de interesse público, como a abolição da escravidão. (SANTOS, 2010). Com brilhante e afirmativa trajetória, Arthur Rocha era amplamente reverenciado pela comunidade negra na virada do século XX. Já falecido, tinha suas peças teatrais encenadas nos salões da Sociedade Floresta Aurora, como parte das comemorações de liberdade, ocorridas nas datas de 28 de setembro e 13 de maio, marcando a Lei do Ventre Livre e a Abolição da Escravidão (ZUBARAN, 2008, p. 176). Em setembro de 1904, a Sociedade Floresta Aurora publica, nas páginas do jornal negro O Exemplo , o convite para as comemorações da “gloriosa data de 28 de setembro”. O grandioso marco fora celebrado com “espetáculo de gala” e encenação da peça A Filha da Escrava “primorosa joia literária da lavra do imortal escritor Arthur Rocha”, conforme anunciado no convite. Ainda em atividade, o Floresta Aurora é o mais antigo clube social negro do país, fundado em 1872, em Porto Alegre/RS. Olhando a partir desse lugar de destaque a que fora alçado, consideramos que a escolha de Arthur Rocha para nomear o logradouro na Bacia do Mont’Serrat não foi aleatória, mas uma decisão consciente relacionada à vontade de marcar a presença negra naquele espaço a partir de um de seus ícones (VIEIRA, 2021). Figura 1 – Arthur Rodrigues da Rocha (1859-1888), intelectual negro gaúcho Fonte: SANTOS (2009, p. 49). Referências FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre : guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006. SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre : crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Editora Movimento: Instituto Estadual do Livro, 1975. 2 v. SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as cortinas : Representações étnico-raciais e pedagogias do palco no teatro de Arthur Rocha. 2009. 144 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. Disponível em: https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM103.pdf. Acesso em: 27 mar. 2017. SANTOS, Isabel Silveira dos. Arthur Rocha: um intelectual negro no “mundo dos brancos”. In : ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, X., Santa Maria. Anais [...].Santa Maria: UFSM, 2010. p. 1-16. Disponível em: http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279496410_ARQUIVO_ arthurrochaumintelectualnegronomundodosbrancos.pdf. Acesso em: 10 fev. 2015. VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970) : geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023. ZUBARAN, Maria Angélica. Comemorações da liberdade: lugares de memórias negras diaspóricas. Anos 90 , Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 161-187, jul. 2008. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/anos90/article/viewFile/6743/4045. Acesso em: 6 fev. 2017.

  • Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre

    A primeira instituição denominada Santa Casa de Misericórdia foi criada em Lisboa, no ano de 1498. A partir dela, uma série de instituições semelhantes passaram a existir em Portugal e em territórios que estavam sob domínio português, localizados na Ásia, África e América. Assim surgiram e foram construídas as Casas de Misericórdia e suas irmandades. Tais instituições recebiam incentivo ou até mesmo eram criadas pelo Estado, pela Monarquia. Na intenção de trilharmos o caminho percorrido para o nascimento da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, necessitamos direcionar nossos olhares para os momentos finais do século XVIII, pois até o ano de 1795, a recém fundada, em Porto Alegre, ainda não constava com um espaço propriamente dedicado ao trato dos enfermos locais. A referência de amparo aos doentes e necessitados era o albergue em que morava uma mulher negra, chamada Angela Reiúna, localizado na Rua Pecados Mortaes, hoje Rua Bento Martins. Juntamente com Antônio José da Silva Flores e Luiz Antônio da Silva, Ângela, além dos serviços de saúde, levantava donativos e oferecia o preparo de refeições aos mais pobres. A partir disto, a primeira enfermaria da cidade foi construída, fruto da organização destes moradores que, de forma precária, atendiam doentes na região. A enfermaria era feita de tijolos das inúmeras olarias da cidade, servindo de legado ao projeto do Irmão Joaquim Francisco do Livramento que, em 1802, foi a Lisboa para pedir autorização e apoio na criação da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. A Santa Casa foi o primeiro hospital do Rio Grande do Sul. O início de sua construção se deu em 1803 e sua irmandade foi criada em 1814, sendo ela responsável pela administração do hospital, escrita do estatuto e demais atividades burocráticas. Os primeiros pacientes do hospital começaram a ser recebidos em 1º de janeiro de 1826. O tempo entre o começo da construção e o início dos atendimento aos pacientes foi marcado por uma série de disputas em torno do espaço. Com a morte do então governador interino da província, Brigadeiro Francisco João Rocio, houve a tentativa de instalar doentes militares no hospital, que seria o primeiro da então Vila de Porto Alegre e era destinado, principalmente, aos enfermos pobres, escravizados e presos. Estas diferenças de perspectiva em relação ao espaço foram responsáveis por esta lacuna temporal. Convém lembrar que, no século XIX, os hospitais não tinham a cura como objetivo principal, mas eram um misto de caridade e filantropia, que incluía, além do tratamento hospitalar, o encarceramento, auxílio aos necessitados e serviços funerários. Isso porque o melhor tratamento para doenças era o recebido em domicílio, sendo o hospital reservado àqueles que não possuíam casa. Uma das funções principais da instituição ao longo do XIX foi servir enquanto Casa da Roda, prática que já era comum em outros locais e se iniciou em Porto Alegre a partir de 1837. Neste ano, a Santa Casa recebeu a incumbência legal de criar e manter os infantes expostos , crianças recém-nascidas deixadas na instituição para serem criadas ou adotadas. A referência mais conhecida desta prática é a Roda dos Expostos. Grande parte das pessoas incumbidas pelos primeiros cuidados dessas crianças eram mulheres, em sua maioria negras, que trabalhavam enquanto amas de leite e se responsabilizavam pela criação e tutela dos expostos. Outra das atribuições da instituição era a responsabilidade sobre os doentes mentais, para os quais havia o Asilo dos Alienados, que durou até 1884, quando foi fundado o Hospital Psiquiátrico São Pedro. As alegações de pacientes entrando no hospital com psicopatologias eram muitas e seus registros se iniciam a partir de 1834, a alta demanda criou a necessidade de um espaço específico para estes atendimentos pois na década de 1870 o local já não tinha mais as condições necessárias para os pacientes. Neste sentido, também convém lembrar que no período escravocrata, uma série de cartas de alforria eram escritas e direcionadas à Santa Casa alegando necessidade de internação de escravizados, e por meio delas também havia o pedido para que as responsabilidades financeiras dos tratamentos passassem a ser da instituição, como mostra a carta de alforria de Eduarda, onde consta que: “[...] apesar de já se achar a mesma melhor daquele incômodo, peço a direção da mesma para Sta Casa de Misericórdia, a fim de ser ela aplicada ao serviço do estabelecimento e receber o serviço do estabelecimento, ficando eu exonerado de quaisquer despesas do seu tratamento quer anteriores quer posteriores [...]”. Temos outro documento, este escrito por Luiz Alves de Oliveira Bello, onde ele alega que um de seus escravizados, chamado Protázio, era “doido e pobre” e pede que o homem seja recolhido pela Santa Casa para ser tratado. Havia também casos em que os senhores pagavam as custas do tratamento dos escravizados, que poderiam variar de acordo com a idade e tempo de permanência do doente, sendo que a faixa etária média dos internados era de 13 a 30 anos. Ainda, o hospital possuía em seu terreno um cemitério para enterrar os membros da irmandade e indigentes do hospital. A partir de 1850, a instituição passou a enterrar os escravizados e os livres, fora da cidade, onde hoje situa-se o bairro Azenha. Conforme foi previamente apontado, para além de pacientes, os escravizados aparecem nos registros também como força de trabalho, assim como muitos livres e libertos. Outros eram antigos internados, que se somaram àqueles que foram comprados, alugados ou doados à Santa Casa. Quanto às atividades praticadas, atuavam como serventes nas enfermarias, na botica, no cemitério, na cozinha ou lavanderia, mas também podiam ser especializados, por exemplo, cuidando da sangria, já que era prática utilizada em grande escala nos navios que traziam escravizados da África. Em razão desta variedade de sujeitos e funções desempenhadas chama atenção o grande número de pessoas negras dentro da instituição. Tais indícios mostram que ao longo de sua história a instituição foi marcada por uma forte presença negra em diferentes partes de sua estrutura, como é o caso de Aurélio Veríssimo de Bittencourt, que na década de 1890 ocupava uma cadeira na direção do hospital. Assim, a presença negra na instituição era fundamental, pois estava diretamente ligada com a cura e/ou alívio dos sintomas e dores das pessoas internadas. E, assim, a Santa Casa constituiu-se como espaço de mobilidade social para estes indivíduos, que deixaram seus legados, demonstrando sua importância no que diz respeito às práticas de cura, cujas trajetórias são fundamentais para que se entenda a própria instituição e seus significados para Porto Alegre. Referências ALFORRIA Eduarda. DOC83 - Alforria Eduarda, 15.12.1863 . Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1863]. ALFORRIA Protázio. DOC1- Alforria Protázio, 07.11.1853. Acervo do Centro Histórico-cultural da Santa Casa. Maço 4 - (1803 – 1853). [Porto Alegre: Centro Histórico-Cultural da Sana Casa, 1853]. BRIZOLA, Jaqueline Hasan. Cativeiro e moléstia : a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e o perfil de escravos enfermos no contexto do fim do tráfico negreiro no Brasil (1847-1853). 2010. Monografia (Licenciatura em História) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2006. HISTÓRIA CHC Santa Casa. In : CHC . [ S. I .], [20--?]. Disponível em: https://www.chcsantacasa.org.br/chc-santa-casa/historia/#:~:text=Localizada%20no%20Alto%20da%20Bronze,natal%2C%20e%20em%20Porto%20Alegre . Acesso em: 3 nov. 2022. LEAL, Noris Mara Pacheco Martins. Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre: 196 anos de amor à vida. Revista Acta Médica Misericordiae , [ S. l. ], v. 2., n. 2., p. 68-71, 1 dez. 1999. Disponível em: http://www.actamedica.org.br/publico/noticia.php?codigo=44&cod_menu=44 . Acesso em: 3 nov. 2022. TOMASCHEWSKI, Cláudia. Entre o Estado, o Mercado e a Dádiva : A distribuição de assistência a partir das Irmandades da Santa Casa de Misericórdia nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, Brasil, c. 1847 - c. 1891. 2014. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

  • João Cândido

    J oão Cândido (1880-1869), Encuzilhada do Sul, Porto Alegre, Rio de Janeiro. João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul (antes distrito de Rio Pardo), na fazenda Coxilha Bonita, que ficava no vilarejo Dom Feliciano, no interior do Rio Grande do Sul, em 24 de junho de 1880, oito anos antes da abolição da escravatura. Mudou-se para Porto Alegre quando tinha dez anos de idade, permanecendo aos cuidados do almirante Alexandrino de Alencar (1848-1926). Neste período, em Porto Alegre, João Cândido, pela primeira vez, teve contato com um navio de guerra da Marinha Brasileira chamado Ondina, com o auxílio do Almirante. De acordo com a professora Maria Luci, o “futuro marinheiro chega ao cais na companhia do oficial, o que provoca grande curiosidade aos marujos que estavam a bordo; jamais um negro tivera regalia.” Em depoimento para a Anamnese do Hospital dos Alienados em abril de 1911, e para a Gazeta de Notícias , em 31 de dezembro de 1912, João Cândido afirma ter sido soldado do General Pinheiro Machado na Revolução Federalista de 1893, portanto, antes de entrar para a Escola de Aprendizes do Arsenal de Guerra de Porto Alegre. Quatro anos mais tarde, João Cândido ingressaria como grumete na Marinha do Brasil, indicado por seu tutor. Fez parte da Escola de Aprendizes-Marinheiros em Porto Alegre, em 1894, e depois atuou na instituição como instrutor. Por lá, exerceu diversas funções, tais como de artilheiro, faroleiro, maquinista, gajeiro, sinaleiro e timoneiro, em diferentes embarcações. A corporação costumava ser o destino certeiro de jovens excluídos da sociedade, negros em sua maioria. Muitas vezes, os moços chegavam à Marinha indicados pela polícia e este encaminhamento era visto como uma punição. A instituição era composta, na época, de 50% negros, 30% mulatos, 10% caboclos e 10% brancos. E se no alto da hierarquia estavam os oficiais de alta patente e, em geral, brancos, a maioria dos marinheiros era preenchida por homens pobres, normalmente filhos de escravizados, que recebiam os piores salários e eram humilhados com frequência. Como bem explica, entre outros, Álvaro Pereira do Nascimento, os castigos físicos haviam sido abolidos no Exército em 1874, mas na Marinha persistia a aplicação de chibatadas, instrumento símbolo do período em que vigorava o sistema escravocrata – sendo que a escravidão tinha sido extinta 22 anos antes. Mas João Cândido faria carreira, como grumete, quando foi destacado para trabalhar no Rio de Janeiro, lotado na Divisão de Instrução do navio-escola Benjamin Constant para cumprir diferentes funções: artilharia, torpedo, levantamento, levantamento hidrográfico, evolução, bloqueio de portos, tiro ao alvo e reconhecimento de portos. João Cândido percorreu todo o litoral brasileiro, as principais bacias hidrográficas (Prata e Amazônica) e navegou por quatro continentes (África, Europa, América do Norte e América do Sul). Conheceu personagens e presenciou eventos históricos. Instruiu-se nas artes militares, recebeu elogios, promoções, rebaixamentos e punições, aprendizados múltiplos marcados pela presença das águas e a presença soberana do mar durante 15 anos. No início do ano de 1900, participou da missão republicana quando o Brasil disputou diplomaticamente com a Bolívia o território do Acre. O marinheiro negro rumou para Belém do Pará e Manaus, quando contraiu tuberculose pulmonar, por volta de 1904, tendo que permanecer por 90 dias no Hospital da Marinha para tratar da doença, depois retornando ao Rio de Janeiro. João Cândido foi enviado para Newcastle-on-Tyle , na Inglaterra, em julho de 1909, junto com outros marinheiros, para acompanhar o fim da construção, especializar-se no equipamento e compor a tripulação do navio de guerra brasileiro, o encouraçado Minas Geraes . Foi por lá que tomou contato com as ideias politizadas dos marujos ingleses. Não por coincidência, de volta, os brasileiros começaram a questionar a situação vivenciada pela corporação. A nova esquadra brasileira ficou pronta em 1910, com seus 34 canhões. Nos meses seguintes, vieram o encouraçado São Paulo (também de grande porte) e o cruzador-ligeiro Bahia . Na Europa, João Cândido conviveu com marinheiros de todas as partes e conheceu um dos mais politizados e organizados proletários existentes. Também já era grande a indignação da tripulação da Armada Brasileira contra os castigos corporais que sofria constantemente, além do excesso de trabalho e da péssima remuneração. Os oficiais viam os marinheiros simplesmente como escravos. Depois, a própria revolução do nível técnico-científico desses marinheiros que, com novas belonaves, foram transformados em peritos foguistas, mecânicos, eletricistas etc., tiveram seu peso. Iniciaram-se, assim, as primeiras reuniões para se discutir uma possível mudança. Na Inglaterra, João Cândido mandou pintar, à carvão, o perfil de Nilo Peçanha (1867-1924), chefe de governo, por quem nutria grande simpatia, há algum tempo. Quando o Minas Geraes chegou ao Rio, foi visitado pelo presidente e todo o ministério. O ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, mostrou o quadro ao presidente, que mandou marcar audiência com João Cândido, para comparecer no Palácio do Catete, ocasião em que o marinheiro negro entregou o quadro e, ao mesmo tempo, suplicou ao presidente, em nome de milhares de marinheiros a abolição da chibata na Armada. Como vimos, embora tal tipo de punição fosse proibida desde a Constituição imperial de 1824, a Marinha só mudaria seus métodos por meio do Decreto n.º 3 de 16 de novembro de 1889, assinado pelo então presidente Marechal Deodoro da Fonseca, com a legislatura da nova República que acabou proibindo a prática. Mas a Lei foi reavivada com o castigo sendo permitido em “campanha correcional” e para casos de “má conduta”. Apesar do enorme poderio bélico e da modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disciplinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso de chibata e de outras punições, como prisão solitária, diminuição de comida, degredo e ficar “a ferros” (acorrentado). Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser aplicado, a critério dos oficiais, assim atingindo um contingente de 90% de negros e mulatos – centenas de marujos continuavam a ter seus corpos retalhados pela chibata como no tempo da escravidão. Por ocasião das comemorações do centenário da independência do Chile, os navios Bahia, Tamoio e Timbira foram mandados representar o Brasil, mas foram tantos os castigos aplicados aos marinheiros durante a viagem que aquele conjunto de belonaves ganhou o apelido de Divisão da Morte. A Revolta da Chibata, sob a liderança do marinheiro negro João Cândido Felisberto, foi um ato de insatisfação ocorrido no início da República devido ao uso da chibata como castigo na armada brasileira, que reivindicava o fim da prática de torturas que remontava aos tempos da escravidão, e dos maus-tratos infligidos aos subalternos pela oficialidade nos navios da Marinha de Guerra Brasileira. Um grande movimento começou em 1910 e contou com a liderança de João Cândido, marinheiro de 1ª classe, da 16ª Companhia da Marinha nacional, logo apelidado de Almirante Negro. Na noite de 21 de novembro de 1910, o marinheiro negro Marcelino Rodrigues de Meneses, no convés do Minas Geraes , nau capitânia da nova esquadra, foi condenado a 250 chibatadas na frente de toda a tripulação – castigo que continuou, apesar do desfalecimento da vítima. Seis dias depois, a Revolta explodiu. A insurreição se desencadeou a bordo do Minas Geraes , mas, em seguida, atingiu outros navios, que tiveram seus comandantes destituídos. Este fato antecipou a data programada para a insurreição de 25 para 22 de novembro de 1910, justamente na noite que o comandante do navio Minas Geraes, o Capitão João Batista das Neves, dormiria fora do navio, porém retornou mais cedo. Então os marujos tomariam a posse das armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, tendo o controle do navio-mãe. Depois, os marinheiros indignados tomaram dois encouraçados e os apontaram da baía da Guanabara para a cidade. Já eram, a essa altura, cerca de 2.300 marinheiros amotinados, entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910, e que tinham sob seu comando os principais navios de guerra da esquadra: Minas Geraes , São Paulo , Bahia , Timbira e Deodoro , todos apontando os canhões sobre a então capital do Brasil, exigindo o fim dos castigos corporais vigentes na Marinha. O movimento que ficaria conhecido por Revolta da Chibata, trouxe para a cena pública setores oprimidos da população, como agentes históricos transformadores. Além de exigirem o fim da chibata, os rebeldes pediam também, anistia. O governo do marechal Hermes da Fonseca (empossado há uma semana como oitavo Presidente da República no Brasil) e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram rapidamente todas as condições. No espaço de apenas cinco dias, o marujo gaúcho se transformou de ilustre desconhecido em uma grande celebridade no Brasil. Foi o começo de uma relação ambivalente que perseguiu João Cândido por toda a vida; ele atraía admiração, mas também, e nas mesmas doses, muito ódio. Após quatro dias de tensão na capital federal, a Revolta terminou em 27 de novembro de 1910, com a anistia aos revoltosos concedida pelo governo. Anistiados, os marinheiros devolveram os navios e largaram as armas. No entanto, no dia seguinte, dia 27, o marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) assinaria do Decreto que permitia a exclusão da Armada de todos os marinheiros que representassem risco, o que era quebra de palavra, uma traição do texto da Lei de Anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da República e sancionada pelo presidente da República. Doze dias depois, ocorre outra rebelião, dessa vez envolvendo as guarnições do batalhão naval (na Ilha das Cobras) e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Os combates foram rápidos, porém mais violentos do que na insurreição de novembro, pois o governo partia para esmagar os rebeldes, quando as perdas somaram 24 mortos e 134 feridos. Os navios com os marujos da Revolta da Chibata, contudo, não tiveram qualquer participação nesse segundo episódio, mas o governo aproveitou do pretexto para fazer uma perseguição mais violenta. O saldo da repressão resultaria em 1.216 expulsões da Marinha, número equivalente a quase metade dos participantes da Revolta da Chibata; 600 pessoas presas, inclusive os líderes do movimento (que sofreram maus-tratos); degredo e trabalho escravo para centenas; e, ainda, um número não contabilizados de assassinatos. Dezoito líderes foram para a solitária do batalhão Naval Ilha das Cobras no Rio. Apenas João Cândido e um companheiro saíram vivos de lá. Em 18 de abril de 1911, como “doente mental”, ele foi transferido aos Hospício dos Alienados, onde permaneceu por dois meses e, em seguida, foi mais uma vez remetido ao presídio Ilha das Cobra, onde sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Depois, foi internado no Hospital de Alienados, na praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Após 18 meses de detenção, ele e os demais colegas de prisão apresentaram-se ao Conselho de Guerra. Foram defendidos por advogados contratados pela Irmandade da Nossa Senhora do Rosário, que nada cobraram pelo serviço. No dia 1º de dezembro de 1912, foram absolvidos, mas excluídos para sempre da Marinha. Ao deixar a cadeia, em 30 de dezembro de 1912, João Cândido, mesmo sentindo o gosto da liberdade, estava quebrado – sem dinheiro e enfraquecido. Ele, também teve uma notícia ruim (embora não surpreendente): acabava de ser excluído dos quadros da Marinha de Guerra do Brasil. Foi o último dia em que usou a farda. Passou a morar na casa do carpinteiro Freitas, no bucólico bairro de Laranjeiras, na zona sul carioca, ao mesmo tempo em que passou a trabalhar no serviço pesado do porto. Após, emprega-se no veleiro Antônico para conduzir a embarcação dos portos do sul do país ao Rio de Janeiro como comandante. Trabalhou em diversas atividades laborais na Marinha Mercante e em barcos particulares, porém os oficiais da Marinha pressionavam os patrões e João Cândido era sistematicamente demitido. Logo depois, se casou com Marieta, na Igreja Nossa Senhora da Glória, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), uma das filhas de Freitas. A relativa calma durou pouco mais de um ano, quando João Cândido foi demitido das atividades na Marinha Mercante. Começou, então, a ser boicotado e conseguiu emprego na descarga de peixes na praça Quinze. Em 1917, sua esposa faleceu e, três anos depois, ele conheceu Maria Dolores, de apenas 18 anos. Foi então que, em 1919, juntando o dinheiro que restava do líder da Revolta da Chibata, comprou o modesto caíque Três Marias para pescar perto dali, no mercado do cais Pharoux (Praça XV). Em condição de pobreza, mas perto dos elementos entre os quais ficavam mais à vontade (cais, navios, marinheiros, o mar) e no meio de sua gente, viveu por quatro décadas, sem salário fixo ou garantias sociais, como os demais pescadores pobres em todo Brasil. A relação entre o casal terminou de maneira trágica: em 1928, ela ateou fogo ao próprio corpo diante das duas filhas mais velhas do casal. Em 1953, despede-se do navio Minas Geraes , vendido como sucata à Itália. Em seguida, volta à terra natal para receber homenagem, que foi cancelada pela Marinha Brasileira. Contudo, sempre atento à política, João acompanhou com entusiasmo o nascimento do grupo de esquerda Aliança Nacional Libertadora e, anos mais tarde, o surgimento da Ação Integralista Brasileira, seduzido por alguns oficiais integrantes da Marinha, assim como o líder Abdias do Nascimento e o bispo Dom Helder Câmara. Em 1964, foi derrotada a Rebelião dos Marinheiros, na qual Cândido tomou parte. Em 1968, casado com Ana, João Cândido concedeu entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e declarou o seguinte: “E o caso era este. Nós que vinhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha do Brasil ainda o homem tirasse a camisa para ser chicoteado por outro homem.” Nos anos finais de sua vida, o Almirante Negro recebeu pensão da prefeitura da sua cidade natal. Faleceu, pobre, altivo em relativo anonimato, em uma tarde chuvosa de 06 de dezembro de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, com 89, vítima de um câncer do intestino. Morava em um casebre na baixada fluminense, em uma rua sem saneamento básico ou luz elétrica. Seu enterro, em plena ditadura militar, foi cercado de policiais à paisana. Além de filhos e netos, também compareceram alguns conselheiros da Associação Brasileira de Imprensa; o amigo pastor Luiz Manzon, que encomendou o corpo, o jornalista e amigo Edmar Morel que, emocionado, declarou à beira do túmulo: “Você dignificou a espécie humana. Adeus, João Cândido.” Entretanto, a revolta que liderou entrou para a história como um movimento pós-emancipação, e seu nome permanece motivando aqueles que, cansados dos tratos humilhantes e da falta de respeito, exclusão social e discriminação racial, lutam por um país com condições melhores e com mais direitos para a massa de trabalhadores. Em 22 de novembro de 1984, quando a Revolta da Chibata completou 74 anos, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro concedeu o título de Cidadão Carioca póstumo ao marinheiro João Cândido, por iniciativa do vereador Jorge Ligeiro. Em 1991, ele recebeu o título póstumo de cidadão honorário de São João do Meriti, no Rio de Janeiro. Em 2002, a Senadora Marina Silva e o ex-deputado Marcos Afonso apresentam um projeto de anistia póstuma a João Cândido e seus companheiros da Revolta da Chibata. Com a mobilização do Movimento Social Negro, em 24 de julho de 2008 foi publicada a Lei Federal n.º 11.756/2008 no Diário Oficial da União , a qual concedeu a anistia póstuma a João Cândido Felisberto e aos demais participantes do movimento, embora tivesse ficado de fora promoções e indenizações. Com a publicação do livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata , pela editora Irmãos Pongetti, em 1959, a trajetória histórica e heroica de João Cândido ganhou ampla visibilidade. Apesar de todas as adversidades e injustiças sofridas por João Cândido, ele não foi privado de ser consagrado como “Almirante Negro”, herói do povo brasileiro. Entre as homenagens que recebeu, o marujo gaúcho foi ao Rio Grande do Sul, em sua única viagem aérea, para uma sessão promovida pela Sociedade Floresta Aurora, clube social negro e sesquicentenário de Porto Alegre. A pedido do clube nego, o renomado escultor Vasco Prado (1914-1998) modelou em barro o busto original de João Cândido, em 1959. Ele foi fundido em bronze, 40 anos depois, quando em 22 de novembro de 2001, a obra foi assentada e inaugurada no Parque Marinha do Brasil, no bairro Praia de Belas, em Porto Alegre. Em novembro de 2007, uma estátua-monumento de João Cândido de três metros de altura, já consagrado como “Almirante Negro”, foi inaugurada no pátio do Museu da República (Palácio do Catete), voltada para o mar. Ainda não existe um filme de longa-metragem, mas diversos curtas já circularam em salas de exibição sobre sua trajetória heroica: o documentário/ficção João Cândido, um Almirante Negro (1987); João Cândido e a Revolta das Chibatas (2004); o documentário Memórias da Chibata , dentre outros, além de diversas peças teatrais, vários livros e teses universitárias. Sua saga foi tema do famoso samba “O Mestre-sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, em 1975, sobretudo em sua versão original cantada por Elis Regina, que depois sofreu várias modificações impostas pela censura, durante o período da ditadura militar: O Almirante Negro (Letra original antes da censura) João Bosco e Aldir Blanc Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo marinheiro A quem a história não esqueceu Conhecido como almirante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas Jorravam das costas dos negros Entre cantos e chibatas Inundando o coração De toda a tripulação Que a exemplo do marinheiro gritava: não! Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glórias a todas as lutas inglórias Que através da nossa História ...não esqueceremos jamais... Salve o almirante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve...) Salve o Almirante Negro Que tem por monumento As pedras pisadas dos cais! O Mestre-Sala Dos Mares (Letra censurada e divulgada) João Bosco e Aldir Blanca Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro A quem a história não esqueceu Conhecido como navegante negro Tinha a dignidade de um mestre-sala E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Rubras cascatas Jorravam das costas dos santos Entre cantos e chibatas Inundando o coração De todo o pessoal do porão Que a exemplo do feiticeiro gritava, então: Glória aos piratas, às mulatas, às sereias! Glória à farofa, à cachaça, às baleias! Glórias a todas as lutas inglórias Que através da nossa História ...não esqueceremos jamais... Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais (Mas, salve...) Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Sobre João Cândido, o Almirante Negro, o escritor e crítico literário Antônio Cândido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, Teatro Popular, Olho Vivo , declarou o seguinte: “Ninguém mais do que esse lutador negro mostrou aos brasileiros que todos os sacrifícios se justificam no combate pela dignidade básica do homem: o direito inalienável de ser respeitado.” Sendo assim, João Cândido Felisberto está eternizado como um herói brasileiro. Referências BARBOSA, Paulo Côrrea; SCHUMAHER, Schuma. Almanaque Histórico – João Cândido – a luta pelos direitos humanos. Brasília: Abravídeo, 2008. GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia NEGRA . 1. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2021. LOPES, Vera Neusa; SANGER, Dircenara dos Santos. João Cândido: personalidade da história brasileira. Identidade, Boletim do Grupo de Negros e Negras da EST/IECLB , São Leopoldo, v. 8, jul./dez. 2005. MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido . Porto Alegre: Edições Tchê, 1984. MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido – A Revolta da Chibata. 3. ed. atualizada. , Porto Alegre: Editora da Cidade, 2010. PEREIRA, Lúcia Regina Brito. Africanidades Sul-Rio-Grandenses . 1. ed. João Pessoa: Editora Grafset, 2012. (Coleção A África Está em Nós - História e Cultura Afro-Brasileira). PESTANA, Maurício. João Cândido – Herói Brasileiro. Centenário da Revolta da Chibata. Brasília: Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial: Governo Federal, 2010.

  • Pelópidas Thebano

    A rtista plástico, desenhista e figurinista, Pelópidas Thebano Ondemar Parente nasceu em Porto Alegre, RS, em 23 de abril de 1934. É filho do militar Antônio Augusto Waldemar Parente e de Ondina Silva Parente, que era costureira no Exército Brasileiro. Desde cedo destacou-se com desenho artístico e, sobretudo, como artista plástico. Durante o período que estudou no Colégio Rosário, ganhou o primeiro lugar e um concurso de desenho e duas menções honrosas no concurso estadual patrocinado pela Liga de Defesa Nacional no período de 1946 a 1947. Durante sua infância, o artista colocava-se ao lado do pai, sentado no chão, quando pegava folhas de papel para rabiscar e desenhar, ao mesmo tempo em que o pai lhe ofertava lápis em diversas cores. Thebano era um grande admirador do artista plástico espanhol Joan Miró, em face a utilização da profusão de cores traduzidas em suas telas, e que Thebano elabora magnificamente em sua arte afrocentrada nas pinturas e nos arranjos cerâmicos multicoloridos. Entre as décadas de 50 e 80 destacou-se como figurinista de blocos de carnaval da cidade de Porto Alegre. Deste modo, seu desenvolvimento artístico também teve início no carnaval. Ele foi figurinista de inúmeros blocos carnavalescos. Neste período da história do carnaval de Porto Alegre, havia diversos blocos no primeiro quartel do século XIX, tais como os Guaranis, os Xavantes, os Ases do Ritmo, Os Comandos, o X do Problema, o Aratimbó e outras agremiações. Desde então, passou a ser reconhecido como artista plástico. Thebano desfilou, também, por algumas agremiações carnavalescas, dentre elas a tribo carnavalesca Xavantes e a Escola de Samba Praiana. Fez carreira no serviço público estadual, na Secretaria Estadual de Obras Públicas do Rio Grande do Sul, onde atuou entre as décadas de 1950 e 1990, como desenhista arquitetônico, paisagista e urbanista. Sobre este período profissional, ele comentou: Era muito solicitado pelos arquitetos e, às vezes, fazia muitos serviços particulares, os chamados ‘cabritos’. Em Porto Alegre, aqui, desenhei muitas obras de edifícios, planos diretores, como tem o Centro Administrativo. Eu ajudei a desenhar o Jardim Botânico, O Mirante, lá do Caracol...e, aí, eu fui aprimorando o meu trabalho. Por isso, é que eu tenho essa facilidade de desenhar prédios, né. O artista plástico Thebano contribuiu com o desenho para a primeira versão, junto à Metroplan, do meio de transporte Aeromóvel, idealização do engenheiro gaúcho Oskar Coester. A partir de 1985, aprofundou seus estudos em pintura, o que o levou a participar mais intensamente de uma série de exposições e iniciativas ligadas às artes visuais. Depois de se desvincular como desenhista técnico da prefeitura de Porto Alegre, Pelópidas Thebano passou a se dedicar integralmente à pintura, assim ganhando projeção e reconhecimento como artista. Em visita de férias ao seu filho Paulo Roberto Marques Parente a Salvador (BA), também teve uma imersão no cenário cultural da Bahia, cuja experiência influenciou muito no desenvolvimento futuro de seu trabalho artístico. Sua pintura, que se vale de diferentes técnicas e materiais, inclusive cola colorida, carrega ainda as marcas do desenho. Pelópidas compôs uma série que evoca a diáspora africana e aponta seus desdobramentos nas sociedades ocidentais. Seguindo uma sequência cronológica, o artista começa pela partida forçada dos negros africanos e a chamada travessia de Calunga Grande, registrando depois a escravatura nas lavouras e, adiante, a inserção dos negros nos parques industriais das grandes cidades. A partir disso, é possível propor uma discussão sobre a influência negra nas manifestações culturais, como danças, festejos, folguedos e artes. Pelópidas Thebano trabalha com a ideia de resgatar, através do estudo histórico, os elementos que conformaram a atual situação do povo negro no Brasil. Desta forma, seus quadros são resultados de colagens de elementos diversos em que estão sempre presentes o “negro”, o “senhor”, a “natureza” e a “África”. O artista ressalta que o negro está longe de sua cultura original, que é preciso “reaprender” os aspectos essenciais. Com este objetivo, Thebano aponta a necessidade de se ter de “estudar” o passado e a importância da pesquisa. A questão latente para ele era descobrir ao longo dos processos históricos quando o negro foi sendo gradativamente obrigado a “incorporar” o modo de vida branco, o porquê deste último ser sempre relacionado com “dignidade” e “prestígio”, enquanto o negro é relacionado com “preguiça” e “atraso”. Nesse sentido, Thebano fez parte com seu amigo e compadre Américo de Souza (idealizador do Troféu Zumbi, Clube Social Negro Satélite Prontidão), que é escultor, pintor, idealizador e organizador do grupo formado por artistas plásticos negros e negras, tais como Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva e que fundaram a Frente Negra de Arte (FNA). As tratativas para fundar a FNA ocorreram entre os anos de 1999 e 2000, mas foi em 8 de dezembro de 2001, no clube social negro Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora, de Porto Alegre, que reuniram-se mais de vinte artistas plásticos e artesão negros, por ocasião da realização do primeiro Fórum Social Mundial, e cujo objetivo era o de levar a “educação” e o “gosto” para as crianças negras, algo que a arte, devido ao seu potencial intelectual, pode servir de instrumento. A FNA inspirou-se na Frente Negra Brasileira, movimento negro da década de 1930. Contudo, do ponto de vista ideológico os artistas negros, alinharam-se às perspectivas e propósitos do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento. O artista gaúcho participou da equipe do Museu do Percurso Negro em Porto Alegre, sendo autor e coautor de vários Marcos Visuais que integram o museu, tais como o “Tambor” (Praça Brigadeiro Sampaio); o “Bará do Mercado” (Mercado Público de Porto Alegre) e o “Painel Afrobrasileiro”, este último está instalado no Largo Glênio Peres. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil. Thebano teve contribuição artística e técnica fundamental na concepção coletiva do marco escultural “Tambor”, localizado na Praça Brigadeiro Sampaio, antigo Largo da Forca (Centro Histórico de Porto Alegre), no início da Rua dos Andradas (Rua da Praia), junto com os artistas plásticos, escultores e griôts , como Gutê (Carlos Augusto da Silva), Leandro Machado, Maria Elaine Rodrigues, Marcos Mattos e Adriana Xaplin. O Tambor foi a primeira obra do Museu de Percurso de Porto Alegre, inaugurada em abril de 2010. Ele surge como um grande agregador das diferentes composições que se formaram durante a etapa de criação dele. As ilustrações nele contidas se referem às negras quitandeiras, aos lanceiros negros, povo de terreiro, aos estudantes negros, aos carnavalescos; aos escravizados marítimos, aos, capoeiristas, que vivenciaram o mundo social do trabalho nos períodos colonial e imperial gaúcho. Os desenhos elaborados por Pelópidas Thebano contribuíram para ressignificar afirmativamente e sinalizar o reconhecimento da presença afirmativa da comunidade negra em Porto Alegre, por meio das suas múltiplas singularidades sociais e culturais, agora afirmadas publicamente e com enorme visibilidade nos espaços sociais e urbanos no centro da metrópole. O Marco Visual ao Bará do Mercado, localizado na área central do Mercado Público é a terceira obra de arte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. A obra, idealizada pela Mãe Norinha de Oxalá, foi concebida pelos artistas visuais Pelópidas Thebano e Leandro Machado, e executada pelos artistas Leonardo Posenato, Vilmar Santos e Vinícius Vieira. Ela homenageia o Orixá Bará no centro do Mercado Público, assim fortalecendo as tradicionais manifestações culturais, étnicas e religiosas ali realizadas, marcando mais um lugar histórico da territorialidade negra na cidade de Porto Alegre. Com projeto apresentado à Petrobrás, foi inaugurado em fevereiro de 2013. Segundo Pelópidas Thebano, o assentamento do Bará ganha força com uma simbologia visual amarrada às tradições africanas. As cores vermelho e amarelo ressurgem e envolvem as 7 chaves do painel de piso, em um desenho novamente curvo, como os outros marcos do museu. Agora, o Bará ganha visibilidade com luz, no ponto central do comércio de Porto Alegre, lugar de troca de saberes e da oralidade afrobrasileira viva. A obra de arte foi executada após uma década de desdobramentos institucionais. Em 2013, o lugar do assentamento do Bará foi indicado como Bem Cultural Imaterial de Porto Alegre, aprovado pelo Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC), passando a fazer parte do patrimônio cultural da cidade. Pelópidas Thebano realizou inúmeros estudos para uma terceira contribuição artística, até idealizar e finalizar o Painel Afro-brasileiro. Posteriormente, foi realizado um extenso trabalho para que em sua execução a obra apresentasse a mesma intensidade de cores que o modelo original. O painel é formado por pequenos fragmentos de cerâmica com cores vibrantes de verde, amarelo, vermelho, preto, cinza e laranja, que formam um conjunto com pessoas pretas que sobressaem em meio a uma trama de recortes geométricos e linhas sinuosas, evocando a visualidade e a ocupação negra do espaço, evidenciando também sua história e resistência. O trabalho recebeu autorização para execução em 2011, mas os recursos para sua construção só foram alcançados em 2014, quando a IV Etapa do projeto do museu foi selecionada pelo edital do Prêmio Funarte de Arte Negra. No catálogo desenvolvido especialmente para o projeto, Vinícius Vieira relata alguns detalhes da confecção do mosaico e explica que antes da finalização da obra, com a moldura de aço inoxidável, foi aplicado um rejunte escuro que, além de unir os fragmentos cerâmicos coloridos, contribui para que as peças aparentam uma unidade, diluindo a composição heterogênea da obra. A primeira etapa do Museu, concluída no ano de 2011, foi realizada por diversas entidades, sob a coordenação gestora do Grupo de Trabalho Angola Janga. Nessa etapa o Museu fazia parte do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura (MinC), executado com recursos da União, de estados e de municípios, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e cooperação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da UNESCO. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil. Em sua trajetória, Pelópidas Thebano conta com exposições na Câmara Municipal de Porto Alegre (2004), onde foi homenageado com o Prêmio Quilombo dos Palmares na Modalidade Atuação Artística e Cultural, Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 2001 e 2002), em parceria com Américo de Souza, Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva. Santander Cultural, Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento Rio Grande do Sul (IAB-RS) (2011); troféu Carlos Santos da Câmara Municipal de Porto Alegre, em 2012; exposição coletiva Porto Negro Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo (2016), Memorial Carlos Alberto de Oliveira (2019) e recebeu o destacado prêmio de Artista Homenageado do XIV Prêmio Açorianos de Artes Plásticas Porto Alegre (2021). Possui trabalhos em coleções e museus do Brasil, entre os quais: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Porto Alegre/Brasil; Pinacoteca Ruben Berta, Porto Alegre/Brasil; Museu de Percurso do Negro, Porto Alegre/Brasil; e Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), Porto Alegre/Brasil. O Painel Afro-brasileiro foi inaugurado no dia 20 de novembro de 2014, Dia Nacional da Consciência Negra, data idealizada pelo poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira, e instalado no muro do Chalé da Praça XV de Novembro. Assim, está localizado em um dos principais pontos de circulação da cidade, caracterizado como um espaço de encontros democráticos, palco de diferentes manifestações políticas e culturais. As cores presentes no Painel conversam com o tom das pedras onde estão fixadas e, ao mesmo tempo, contrastam com a sobriedade dos edifícios históricos e as nuances cinzentas típicas dos centros urbanos. O mosaico parece replicar no equipamento urbano a técnica aplicada na obra. Assim como os fragmentos coloridos, o painel é uma pequena parte do conjunto de marcos que integram o acervo do Museu de Percurso de Percurso do Negro e que preenche alguns vazios da arte pública de Porto Alegre: a carência de obras muralistas e a escassa expressão artística negra na cidade. Pelópidas Thebano faz parte desse novo momento. A estética e a composição do painel nos remetem a algo que é retomado e contradiz a visualidade a que fomos acostumados, trazendo esse novo ponto de vista sobre a cidade e seus habitantes. O trabalho de Thebano é um marco físico e simbólico para o Museu, mas, sobretudo, para a história da arte no RS, e para ele mesmo como artista, pois estabelece um vínculo formal com a cidade através da inserção de sua obra na paisagem de um importante espaço público, reiterando a existência da população e da classe artística negra em Porto Alegre, efetuando o devido registro da obra junto ao acervo do município. O continente africano é tema recorrente em suas obras, o que revela a perpetuação da sua ligação com a ancestralidade, trazendo para a atualidade e para as futuras gerações o contato com a cultura de matriz africana, com suas riquezas, seus ensinamentos e reflexões sobre a história da África, identidade negra e a conscientização do valor e da riqueza cultural dos negros, contribuições que são perceptíveis em seus trabalhos em pintura. Thebano é considerado uma das principais referências da arte negra no Rio Grande do Sul. A última exposição virtual com suas obras “Raiz que se alastra”, de 03 de novembro a 20 de novembro, que contou com curadoria da artista plástica Mitti Mendonça, teve como objetivo abordar a produção artística e a trajetória de Pelópidas Thebano, artista plástico porto-alegrense, já consolidado nas artes plásticas brasileira e afro-brasileira. Em 2002, foi doada para as referidas instituições museológicas a pintura virtual “Raiz que se alastra”, criada em 2013. O artista plástico Pelópidas Thebano (Pelópidas Thebano Ondemar Parente) faleceu em 04 de janeiro de 2022, em Porto Alegre, RS, Brasil. Referências RAMOS, Jeanice Dias; VARGAS, Pedro Rubens Nei; SOUZA, Vinícius Vieira. Museu De Percurso Do Negro Em Porto Alegre, Etapa IV – Painel Afro-brasileiro. Ed. Porto Alegre, RS, 2015. SALAINI, Cristian Jobi. “O negro no campo artístico”: uma possibilidade analítica de espaços de solidariedade étnica em Porto Alegre/RS. In : SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (org.). RS Negro – cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre, RS: Edipucrs, 2008. SOUZA, Vinícius Vieira de Souza. Artes Visuais de referência afro-brasileira no espaço público de Porto Alegre. In : MATTOS, Jane Rocha de. Museus e Africanidades . Porto Alegre, RS: Edições Museu Júlio de Castilhos, 2013. THEBANO, Pelópidas Ondemar Parente. Entrevista, Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre . Depoimento oral. Porto Alegre, 2010. THEBANO, Pelópidas. Exposição Raiz que se alastra . 2021. Curadoria e texto curatorial de Mitti Mendonça. [ S. l. ], 2021. Virtual.

  • Lupicínio Rodrigues

    L upicínio nasceu em Porto Alegre, no dia 16 de setembro de 1914, às 21h30. Ele foi o quarto filho de Francisco Rodrigues e Abigail Oliveira, que tiveram um total de 21 filhos(as), mas apenas 13 sobreviveram. Ainda criança, Lupicínio já demonstrava interesse pela música – e pelas gurias –, deixando a escola em segundo plano. Em 1921, frequentou o Externato Dom Sebastião para crianças carentes. Nessa época Lupi ajudava a família com vários bicos, como baleiro, guri de recados e vendedor de pastéis. Em 1927, aos 13 anos, Lupicínio era visto circulando na boemia da Ilhota, Areal da Baronesa e Cidade Baixa, redutos da comunidade negra de Porto Alegre. Aos 14 anos, ele compôs para o bloco Moleza a sua primeira música: uma marchinha nunca gravada intitulada Carnaval. No início dos anos de 1930, aos 16 anos, Lupicínio é alistado no exército por meio de uma manobra que alterou a sua certidão de nascimento. Assim, foi incorporado como soldado Rodrigues no 7º Regimento de Infantaria, chegando a ser padioleiro na Revolução de 1932. Nessa época, Lupicínio ocupava o posto de cabo. Sua vida militar foi marcada por diversos atos de indisciplina. Chegou a compor um samba criticando a ração recebida pelos soldados, que era sempre charque com farinha. O samba agradou os soldados, mas não caiu no gosto dos comandantes. No ano de 1934, se muda para Santa Maria e, nesse período, compõe Zé Ponte, Felicidade entre outras composições. Nesta cidade, conhece a menina Cerenita, que mais tarde viria a ser sua esposa, na época namorava Inah. Após o curso preparatório de sargentos, Lupicínio deu baixa do quartel, retornando para os doces braços da boemia. O final dos anos de 1930 foram muito movimentados no que diz respeito a sua carreira musical. Nessa época, trabalhou na faculdade de direito da UFRGS como bedel até 1947. Chegou a criar uma escola de samba que teve pouca duração, participou de concursos musicais e transmissões de eventos festivos. Em 1938, no entanto, compôs um dos seus maiores sucessos, o samba “Se Acaso Você Chegasse”, gravado por diversos artistas como: Gilberto Gil, Francisco Alves, Linda Batista, Gal Costa, entre outros. A música recebeu uma versão instrumental em 1944, para o filme Dançarina Loura (traduzido de Lady, Let´s Dance ). No final dos anos de 1940, Lupi abriu uma churrascaria: Galpão do Lupi. Esse seria o primeiro de uma série de estabelecimentos abertos pelo artista. A maioria teve vida curta, mas fica o registro da veia empreendedora. Esses locais eram como uma casa para acolher os amigos de Lupicínio, espaços de trocas e produção musical. Em 1948, Francisco Alves grava a canção “Nervos de Aço”. Este momento marca uma fase de grande reconhecimento. Em 1951, a música “Vingança” é um estrondoso sucesso nacional. A década de 1950 para Lupicínio é muito positiva na história de sua carreira. Nesse período ele transita entre os grandes centros nacionais do Rio de Janeiro e de São Paulo, se apresenta em várias casas de show e participa de programas na Rádio Record. Em 1952, grava pelo selo Copacabana o álbum Roteiro de um Boêmio . No mesmo ano grava quatro canções em dois discos: “Tola”, “O Morro de Luto”, “Pregador de Bolinha” e “Já Sofri”. Em 1953, grava o “Hino do Grêmio”, inspirado em uma greve de ônibus. A discografia de Lupicínio: Francisco Egydio , Vive os Sucessos de Lupicínio Rodrigues - LP 1963 (Odeon) ; Jamelão - Interpreta Lupicínio Rodrigues - LP 1972 (Continental); Lupicínio Rodrigues - Gravações Originais - LP 1974 (Discos Copacabana); Nelson Coelho de Castro, Gelson Oliveira, Bebeto Alves, Paulo Gaiger, Neusa Ávila, Pery Sousa, Nanci Araújo - Coompor Canta Lupi - LP 1989; Vários Interpretes Revivendo 4 CDs - CD (Cedar Revivendo); e Thedy Corrêa Lupicínio - CD 2005 (Orbe). Uma biografia musical sobre Lupicínio, de autoria de Arthur de Faria, foi lançada recentemente – uma oportunidade para conhecer mais sobre a sua trajetória como grande compositor que foi. Falando em Grêmio, Lupicínio era amante do futebol, principalmente dos times da liga da Canela Preta. Times estes que eram compostos majoritariamente por pessoas de cor (como chamavam os negros na época) que viviam nas áreas consideradas como território negro como a Ilhota, local de origem de Lupi. O motivo de Lupicínio ter se tornado gremista está no fato da recusa do Sport Club Internacional em admitir o time Rio Grandense na liga, essa atitude do Inter fez com que aqueles participantes do time preterido se tornassem torcedores fervorosos do tricolor porto-alegrense, incluindo seu Francisco, pai de Lupi. Esse evento, nas palavras de Lupicínio, deu origem à liga da Canela Preta. Em 21 de junho de 1953, uma greve dos transportes públicos dificultou o deslocamento dos torcedores para o estádio para assistirem o certame entre Grêmio e Cruzeiro-POA. O jeito foi ir a pé ao estádio, que ficava localizado onde hoje é o Parque Moinhos de Vento. E foi assim que surgiu o primeiro verso do hino Grêmio “Até a pé nós iremos”. Em 1966, um incidente marcou a sua trajetória na cidade: Lupicínio foi vítima de racismo na Lancheria e Rostiere Olé, localizada na rua dos Andradas. O gerente do estabelecimento disse a Lupi que a lancheria seria privativa da raça branca. O caso ganhou repercussão na imprensa, os responsáveis do estabelecimento foram enquadrados na Lei Afonso Arinos. Houve grande manifestação da comunidade negra de Porto Alegre. Os manifestantes ocuparam o estabelecimento onde havia ocorrido o episódio e foram atendidos sem problemas. Outra faceta que é pouco explorada é o Lupicínio na vida política. O pesquisador Marcelo Campos nos informa que: Em 1959, Lupicínio aceitou um convite para concorrer pelo Partido Republicano (PR), uma sigla pequena e que, no Rio Grande do Sul, também servia de refúgio para comunistas do PCB. A plataforma política do compositor era meio difusa, mesclando temas como exploração pelo capital estrangeiro, a alta do custo de vida e a preocupação social com os trabalhadores da noite, numa espécie de "nacionalismo boêmio". Mas a população não comprou a ideia, e o resultado foram míseros 396 votos, que não davam nem para a saída. Lupi nunca mais concorreu a um cargo eletivo. Essa sua participação na política deve ser levada em consideração uma vez que outras personalidades negras relacionadas ao samba, como Grande Otelo (amigo de Lupi) e Paulo da Portela, de alguma maneira, dialogam com o Partidão. O que revela a inserção de personalidades negras nas discussões sobre o socialismo. Lupicínio Rodrigues ficou conhecido como o compositor da dor de cotovelo. Foi reconhecido dentro e fora do Rio Grande do Sul. Inúmeros intérpretes tiveram a honra de emprestar a voz às mais belas canções do morador ilustre da ilhota. Foram mais de vinte e cinco sucessos. Mesmo sendo um artista conhecido, Lupi não escapou a malha fina do racismo. Foi um defensor da comunidade negra. Para além do artista, conhecemos também o espírito combativo de Ogum nesse enorme compositor. No dia 21 de agosto de 1974, depois de uma vida intensa e interessante, Lupi partiu, nos deixando saudades que matamos quando escutamos suas composições. Porque tudo o que Lupi pedia a esses moços é que acreditassem nele. Assim, que as novas gerações desfrutem das palavras em forma de poema que o nosso querido Lupicínio exalou como aroma de uma roseira. Referências CAMPOS, Marcello. Almanaque do Lupi . Porto Alegre: Editora da Cidade: Letra&Vida, 2015. GERBASE, Carlos. Lupi : Pode entrar que a casa é tua. Porto Alegre: Farol Santander Porto Alegre, 2023. GOULART, Mario. Lupicínio Rodrigues. Porto Alegre: Ed. Tchê, 1984. LUPICÍNIO Rodrigues. In : WIKIPEDIA: the free encyclopedia. San Francisco, CA: Wikipedia Foundation, 29 mar. 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lupic%C3%ADnio_Rodrigues . Acesso em: 6 maio 2023. MARCELO Campos fala sobre a biografia de Lupicínio Rodrigues. In : Gaúcha ZH . [ S. l .], 23 mar. 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2015/03/marcelo-campos-fala-sobre-a-biografia-de-lupicinio-rodrigues-4723656.html . Acesso em: 6 maio 2023.

  • Loja Guaspari

    O projeto do Edifício Guaspari é do importante arquiteto espanhol, Fernando Corona (1895 – 1979), que chegou em Porto Alegre ainda adolescente. Além de arquiteto, Corona foi escultor, crítico e professor de arte. O prédio foi inaugurado em 1933 e é um ícone porto-alegrense de arquitetura modernista. Por cerca de 30 anos, ficou escondido sob uma estrutura metálica, até ter sua fachada recuperada em 2017. Atualmente, é protegido como bem cultural de estruturação, o que significa que não pode ser demolido nem ter alterados seus elementos característicos. Com o crescimento da cidade, foi também crescente a exclusão da população negra das regiões mais centrais para os arrabaldes, produzindo, em determinados locais, um território transicional, ou seja, um “espaço social de trânsito no qual as pessoas se relacionam de maneira fluída por não constituírem uma comunidade permanente” [1] . Era o caso da região localizada entre a frente do edifício Guaspari e o pequeno auditório que a Rádio Gaúcha tinha no Edifício União, na esquina da Av. Borges de Medeiros. Teve maior afluência no período compreendido entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, sendo local de encontro daqueles que saiam do trabalho nas proximidades. Estes grupos que se reuniam no centro da cidade, incluindo a Rua da Praia (Rua dos Andradas) com a Av. Borges de Medeiros – hoje conhecida como Esquina Democrática – e a frente da Loja Masson, a Rua Riachuelo e na frente do edifício Guaspari, entre outros, acabariam por contribuir decisivamente para o surgimento do Movimento Negro Moderno e na construção de uma nova postura identitária. Referências: Ed. Guaspari, uma história de mais de 80 anos. UrbsNova | Agência de Design Social e Inovação. Disponível em: https://urbsnova.wordpress.com/2017/08/09/guaspari/. Acesso em: 08 dez. 2022. CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. 2006. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2360. Acesso em: 08 dez. 2022. [1] CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. O Grupo Palmares (1971-1978): um movimento negro de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico.

Acompanhe os verbetes publicados (8).png
bottom of page