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Conheça o projeto!

O PROJETO MEMÓRIAS NEGRAS EM VERBETES – Inventário Participativo de Referências Espaciais, Sociais e Simbólicas realiza um levantamento visando o resgate e desapagamento da presença das populações negras na história de Porto Alegre.

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Verbetes

Atualizado: 14 de out. de 2024



Artista plástico, desenhista e figurinista, Pelópidas Thebano Ondemar Parente nasceu em Porto Alegre, RS, em 23 de abril de 1934. É filho do militar Antônio Augusto Waldemar Parente e de Ondina Silva Parente, que era costureira no Exército Brasileiro. Desde cedo destacou-se com desenho artístico e, sobretudo, como artista plástico. Durante o período que estudou no Colégio Rosário, ganhou o primeiro lugar e um concurso de desenho e duas menções honrosas no concurso estadual patrocinado pela Liga de Defesa Nacional no período de 1946 a 1947. Durante sua infância, o artista colocava-se ao lado do pai, sentado no chão, quando pegava folhas de papel para rabiscar e desenhar, ao mesmo tempo em que o pai lhe ofertava lápis em diversas cores. Thebano era um grande admirador do artista plástico espanhol Joan Miró, em face a utilização da profusão de cores traduzidas em suas telas, e que Thebano elabora magnificamente em sua arte afrocentrada nas pinturas e nos arranjos cerâmicos multicoloridos.


Entre as décadas de 50 e 80 destacou-se como figurinista de blocos de carnaval da cidade de Porto Alegre. Deste modo, seu desenvolvimento artístico também teve início no carnaval. Ele foi figurinista de inúmeros blocos carnavalescos. Neste período da história do carnaval de Porto Alegre, havia diversos blocos no primeiro quartel do século XIX, tais como os Guaranis, os Xavantes, os Ases do Ritmo, Os Comandos, o X do Problema, o Aratimbó e outras agremiações. Desde então, passou a ser reconhecido como artista plástico. Thebano desfilou, também, por algumas agremiações carnavalescas, dentre elas a tribo carnavalesca Xavantes e a Escola de Samba Praiana.


Fez carreira no serviço público estadual, na Secretaria Estadual de Obras Públicas do Rio Grande do Sul, onde atuou entre as décadas de 1950 e 1990, como desenhista arquitetônico, paisagista e urbanista. Sobre este período profissional, ele comentou:


Era muito solicitado pelos arquitetos e, às vezes, fazia muitos serviços particulares, os chamados ‘cabritos’. Em Porto Alegre, aqui, desenhei muitas obras de edifícios, planos diretores, como tem o Centro Administrativo. Eu ajudei a desenhar o Jardim Botânico, O Mirante, lá do Caracol...e, aí, eu fui aprimorando o meu trabalho. Por isso, é que eu tenho essa facilidade de desenhar prédios, né.


O artista plástico Thebano contribuiu com o desenho para a primeira versão, junto à Metroplan, do meio de transporte Aeromóvel, idealização do engenheiro gaúcho Oskar Coester.


A partir de 1985, aprofundou seus estudos em pintura, o que o levou a participar mais intensamente de uma série de exposições e iniciativas ligadas às artes visuais. Depois de se desvincular como desenhista técnico da prefeitura de Porto Alegre, Pelópidas Thebano passou a se dedicar integralmente à pintura, assim ganhando projeção e reconhecimento como artista. Em visita de férias ao seu filho Paulo Roberto Marques Parente a Salvador (BA), também teve uma imersão no cenário cultural da Bahia, cuja experiência influenciou muito no desenvolvimento futuro de seu trabalho artístico.


Sua pintura, que se vale de diferentes técnicas e materiais, inclusive cola colorida, carrega ainda as marcas do desenho. Pelópidas compôs uma série que evoca a diáspora africana e aponta seus desdobramentos nas sociedades ocidentais. Seguindo uma sequência cronológica, o artista começa pela partida forçada dos negros africanos e a chamada travessia de Calunga Grande, registrando depois a escravatura nas lavouras e, adiante, a inserção dos negros nos parques industriais das grandes cidades. A partir disso, é possível propor uma discussão sobre a influência negra nas manifestações culturais, como danças, festejos, folguedos e artes.


Pelópidas Thebano trabalha com a ideia de resgatar, através do estudo histórico, os elementos que conformaram a atual situação do povo negro no Brasil. Desta forma, seus quadros são resultados de colagens de elementos diversos em que estão sempre presentes o “negro”, o “senhor”, a “natureza” e a “África”. O artista ressalta que o negro está longe de sua cultura original, que é preciso “reaprender” os aspectos essenciais. Com este objetivo, Thebano aponta a necessidade de se ter de “estudar” o passado e a importância da pesquisa. A questão latente para ele era descobrir ao longo dos processos históricos quando o negro foi sendo gradativamente obrigado a “incorporar” o modo de vida branco, o porquê deste último ser sempre relacionado com “dignidade” e “prestígio”, enquanto o negro é relacionado com “preguiça” e “atraso”. Nesse sentido, Thebano fez parte com seu amigo e compadre Américo de Souza (idealizador do Troféu Zumbi, Clube Social Negro Satélite Prontidão), que é escultor, pintor, idealizador e organizador do grupo formado por artistas plásticos negros e negras, tais como Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva e que fundaram a Frente Negra de Arte (FNA).


As tratativas para fundar a FNA ocorreram entre os anos de 1999 e 2000, mas foi em 8 de dezembro de 2001, no clube social negro Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora, de Porto Alegre, que reuniram-se mais de vinte artistas plásticos e artesão negros, por ocasião da realização do primeiro Fórum Social Mundial, e cujo objetivo era o de levar a “educação” e o “gosto” para as crianças negras, algo que a arte, devido ao seu potencial intelectual, pode servir de instrumento. A FNA inspirou-se na Frente Negra Brasileira, movimento negro da década de 1930. Contudo, do ponto de vista ideológico os artistas negros, alinharam-se às perspectivas e propósitos do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento.


O artista gaúcho participou da equipe do Museu do Percurso Negro em Porto Alegre, sendo autor e coautor de vários Marcos Visuais que integram o museu, tais como o “Tambor” (Praça Brigadeiro Sampaio); o “Bará do Mercado” (Mercado Público de Porto Alegre) e o “Painel Afrobrasileiro”, este último está instalado no Largo Glênio Peres. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil.


Thebano teve contribuição artística e técnica fundamental na concepção coletiva do marco escultural “Tambor”, localizado na Praça Brigadeiro Sampaio, antigo Largo da Forca (Centro Histórico de Porto Alegre), no início da Rua dos Andradas (Rua da Praia), junto com os artistas plásticos, escultores e griôts, como Gutê (Carlos Augusto da Silva), Leandro Machado, Maria Elaine Rodrigues, Marcos Mattos e Adriana Xaplin. O Tambor foi a primeira obra do Museu de Percurso de Porto Alegre, inaugurada em abril de 2010. Ele surge como um grande agregador das diferentes composições que se formaram durante a etapa de criação dele. As ilustrações nele contidas se referem às negras quitandeiras, aos lanceiros negros, povo de terreiro, aos estudantes negros, aos carnavalescos; aos escravizados marítimos, aos, capoeiristas, que vivenciaram o mundo social do trabalho nos períodos colonial e imperial gaúcho. Os desenhos elaborados por Pelópidas Thebano contribuíram para ressignificar afirmativamente e sinalizar o reconhecimento da presença afirmativa da comunidade negra em Porto Alegre, por meio das suas múltiplas singularidades sociais e culturais, agora afirmadas publicamente e com enorme visibilidade nos espaços sociais e urbanos no centro da metrópole.


O Marco Visual ao Bará do Mercado, localizado na área central do Mercado Público é a terceira obra de arte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. A obra, idealizada pela Mãe Norinha de Oxalá, foi concebida pelos artistas visuais Pelópidas Thebano e Leandro Machado, e executada pelos artistas Leonardo Posenato, Vilmar Santos e Vinícius Vieira. Ela homenageia o Orixá Bará no centro do Mercado Público, assim fortalecendo as tradicionais manifestações culturais, étnicas e religiosas ali realizadas, marcando mais um lugar histórico da territorialidade negra na cidade de Porto Alegre. Com projeto apresentado à Petrobrás, foi inaugurado em fevereiro de 2013. Segundo Pelópidas Thebano, o assentamento do Bará

ganha força com uma simbologia visual amarrada às tradições africanas. As cores vermelho e amarelo ressurgem e envolvem as 7 chaves do painel de piso, em um desenho novamente curvo, como os outros marcos do museu. Agora, o Bará ganha visibilidade com luz, no ponto central do comércio de Porto Alegre, lugar de troca de saberes e da oralidade afrobrasileira viva.


A obra de arte foi executada após uma década de desdobramentos institucionais. Em 2013, o lugar do assentamento do Bará foi indicado como Bem Cultural Imaterial de Porto Alegre, aprovado pelo Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC), passando a fazer parte do patrimônio cultural da cidade.


Pelópidas Thebano realizou inúmeros estudos para uma terceira contribuição artística, até idealizar e finalizar o Painel Afro-brasileiro. Posteriormente, foi realizado um extenso trabalho para que em sua execução a obra apresentasse a mesma intensidade de cores que o modelo original. O painel é formado por pequenos fragmentos de cerâmica com cores vibrantes de verde, amarelo, vermelho, preto, cinza e laranja, que formam um conjunto com pessoas pretas que sobressaem em meio a uma trama de recortes geométricos e linhas sinuosas, evocando a visualidade e a ocupação negra do espaço, evidenciando também sua história e resistência. O trabalho recebeu autorização para execução em 2011, mas os recursos para sua construção só foram alcançados em 2014, quando a IV Etapa do projeto do museu foi selecionada pelo edital do Prêmio Funarte de Arte Negra. No catálogo desenvolvido especialmente para o projeto, Vinícius Vieira relata alguns detalhes da confecção do mosaico e explica que antes da finalização da obra, com a moldura de aço inoxidável, foi aplicado um rejunte escuro que, além de unir os fragmentos cerâmicos coloridos, contribui para que as peças aparentam uma unidade, diluindo a composição heterogênea da obra.


A primeira etapa do Museu, concluída no ano de 2011, foi realizada por diversas entidades, sob a coordenação gestora do Grupo de Trabalho Angola Janga. Nessa etapa o Museu fazia parte do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura (MinC), executado com recursos da União, de estados e de municípios, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e cooperação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da UNESCO. Também se destaca em sua trajetória a mostra individual Afrobrasilidades (2011), exibida na galeria do Instituto de Arquitetos do Brasil. Em sua trajetória, Pelópidas Thebano conta com exposições na Câmara Municipal de Porto Alegre (2004), onde foi homenageado com o Prêmio Quilombo dos Palmares na Modalidade Atuação Artística e Cultural, Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 2001 e 2002), em parceria com Américo de Souza, Pedro Homero, Tânia Maria Borba, Silvia Victória e Alceu da Silva. Santander Cultural, Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento Rio Grande do Sul (IAB-RS) (2011); troféu Carlos Santos da Câmara Municipal de Porto Alegre, em 2012; exposição coletiva Porto Negro Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo (2016), Memorial Carlos Alberto de Oliveira (2019) e recebeu o destacado prêmio de Artista Homenageado do XIV Prêmio Açorianos de Artes Plásticas Porto Alegre (2021). Possui trabalhos em coleções e museus do Brasil, entre os quais: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Porto Alegre/Brasil; Pinacoteca Ruben Berta, Porto Alegre/Brasil; Museu de Percurso do Negro, Porto Alegre/Brasil; e Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), Porto Alegre/Brasil.


O Painel Afro-brasileiro foi inaugurado no dia 20 de novembro de 2014, Dia Nacional da Consciência Negra, data idealizada pelo poeta, professor e pesquisador gaúcho Oliveira Silveira, e instalado no muro do Chalé da Praça XV de Novembro. Assim, está localizado em um dos principais pontos de circulação da cidade, caracterizado como um espaço de encontros democráticos, palco de diferentes manifestações políticas e culturais. As cores presentes no Painel conversam com o tom das pedras onde estão fixadas e, ao mesmo tempo, contrastam com a sobriedade dos edifícios históricos e as nuances cinzentas típicas dos centros urbanos. O mosaico parece replicar no equipamento urbano a técnica aplicada na obra. Assim como os fragmentos coloridos, o painel é uma pequena parte do conjunto de marcos que integram o acervo do Museu de Percurso de Percurso do Negro e que preenche alguns vazios da arte pública de Porto Alegre: a carência de obras muralistas e a escassa expressão artística negra na cidade.


Pelópidas Thebano faz parte desse novo momento. A estética e a composição do painel nos remetem a algo que é retomado e contradiz a visualidade a que fomos acostumados, trazendo esse novo ponto de vista sobre a cidade e seus habitantes. O trabalho de Thebano é um marco físico e simbólico para o Museu, mas, sobretudo, para a história da arte no RS, e para ele mesmo como artista, pois estabelece um vínculo formal com a cidade através da inserção de sua obra na paisagem de um importante espaço público, reiterando a existência da população e da classe artística negra em Porto Alegre, efetuando o devido registro da obra junto ao acervo do município.


O continente africano é tema recorrente em suas obras, o que revela a perpetuação da sua ligação com a ancestralidade, trazendo para a atualidade e para as futuras gerações o contato com a cultura de matriz africana, com suas riquezas, seus ensinamentos e reflexões sobre a história da África, identidade negra e a conscientização do valor e da riqueza cultural dos negros, contribuições que são perceptíveis em seus trabalhos em pintura. Thebano é considerado uma das principais referências da arte negra no Rio Grande do Sul. A última exposição virtual com suas obras “Raiz que se alastra”, de 03 de novembro a 20 de novembro, que contou com curadoria da artista plástica Mitti Mendonça, teve como objetivo abordar a produção artística e a trajetória de Pelópidas Thebano, artista plástico porto-alegrense, já consolidado nas artes plásticas brasileira e afro-brasileira. Em 2002, foi doada para as referidas instituições museológicas a pintura virtual “Raiz que se alastra”, criada em 2013.


O artista plástico Pelópidas Thebano (Pelópidas Thebano Ondemar Parente) faleceu em 04 de janeiro de 2022, em Porto Alegre, RS, Brasil.



Referências


RAMOS, Jeanice Dias; VARGAS, Pedro Rubens Nei; SOUZA, Vinícius Vieira. Museu De Percurso Do Negro Em Porto Alegre, Etapa IV – Painel Afro-brasileiro. Ed. Porto Alegre, RS, 2015.


SALAINI, Cristian Jobi. “O negro no campo artístico”: uma possibilidade analítica de espaços de solidariedade étnica em Porto Alegre/RS. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (org.). RS Negro – cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre, RS: Edipucrs, 2008.


SOUZA, Vinícius Vieira de Souza. Artes Visuais de referência afro-brasileira no espaço público de Porto Alegre. In: MATTOS, Jane Rocha de. Museus e Africanidades. Porto Alegre, RS: Edições Museu Júlio de Castilhos, 2013.


THEBANO, Pelópidas Ondemar Parente. Entrevista, Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre. Depoimento oral. Porto Alegre, 2010.


THEBANO, Pelópidas. Exposição Raiz que se alastra. 2021. Curadoria e texto curatorial de Mitti Mendonça. [S. l.], 2021. Virtual.


Atualizado: 14 de out. de 2024



João Cândido (1880-1869), Encuzilhada do Sul, Porto Alegre, Rio de Janeiro. João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul (antes distrito de Rio Pardo), na fazenda Coxilha Bonita, que ficava no vilarejo Dom Feliciano, no interior do Rio Grande do Sul, em 24 de junho de 1880, oito anos antes da abolição da escravatura. Mudou-se para Porto Alegre quando tinha dez anos de idade, permanecendo aos cuidados do almirante Alexandrino de Alencar (1848-1926). Neste período, em Porto Alegre, João Cândido, pela primeira vez, teve contato com um navio de guerra da Marinha Brasileira chamado Ondina, com o auxílio do Almirante. De acordo com a professora Maria Luci, o “futuro marinheiro chega ao cais na companhia do oficial, o que provoca grande curiosidade aos marujos que estavam a bordo; jamais um negro tivera regalia.” Em depoimento para a Anamnese do Hospital dos Alienados em abril de 1911, e para a Gazeta de Notícias, em 31 de dezembro de 1912, João Cândido afirma ter sido soldado do General Pinheiro Machado na Revolução Federalista de 1893, portanto, antes de entrar para a Escola de Aprendizes do Arsenal de Guerra de Porto Alegre.


Quatro anos mais tarde, João Cândido ingressaria como grumete na Marinha do Brasil, indicado por seu tutor. Fez parte da Escola de Aprendizes-Marinheiros em Porto Alegre, em 1894, e depois atuou na instituição como instrutor. Por lá, exerceu diversas funções, tais como de artilheiro, faroleiro, maquinista, gajeiro, sinaleiro e timoneiro, em diferentes embarcações.


A corporação costumava ser o destino certeiro de jovens excluídos da sociedade, negros em sua maioria. Muitas vezes, os moços chegavam à Marinha indicados pela polícia e este encaminhamento era visto como uma punição. A instituição era composta, na época, de 50% negros, 30% mulatos, 10% caboclos e 10% brancos. E se no alto da hierarquia estavam os oficiais de alta patente e, em geral, brancos, a maioria dos marinheiros era preenchida por homens pobres, normalmente filhos de escravizados, que recebiam os piores salários e eram humilhados com frequência. Como bem explica, entre outros, Álvaro Pereira do Nascimento, os castigos físicos haviam sido abolidos no Exército em 1874, mas na Marinha persistia a aplicação de chibatadas, instrumento símbolo do período em que vigorava o sistema escravocrata – sendo que a escravidão tinha sido extinta 22 anos antes.


Mas João Cândido faria carreira, como grumete, quando foi destacado para trabalhar no Rio de Janeiro, lotado na Divisão de Instrução do navio-escola Benjamin Constant para cumprir diferentes funções: artilharia, torpedo, levantamento, levantamento hidrográfico, evolução, bloqueio de portos, tiro ao alvo e reconhecimento de portos. João Cândido percorreu todo o litoral brasileiro, as principais bacias hidrográficas (Prata e Amazônica) e navegou por quatro continentes (África, Europa, América do Norte e América do Sul). Conheceu personagens e presenciou eventos históricos. Instruiu-se nas artes militares, recebeu elogios, promoções, rebaixamentos e punições, aprendizados múltiplos marcados pela presença das águas e a presença soberana do mar durante 15 anos.


No início do ano de 1900, participou da missão republicana quando o Brasil disputou diplomaticamente com a Bolívia o território do Acre. O marinheiro negro rumou para Belém do Pará e Manaus, quando contraiu tuberculose pulmonar, por volta de 1904, tendo que permanecer por 90 dias no Hospital da Marinha para tratar da doença, depois retornando ao Rio de Janeiro.


João Cândido foi enviado para Newcastle-on-Tyle, na Inglaterra, em julho de 1909, junto com outros marinheiros, para acompanhar o fim da construção, especializar-se no equipamento e compor a tripulação do navio de guerra brasileiro, o encouraçado Minas Geraes. Foi por lá que tomou contato com as ideias politizadas dos marujos ingleses. Não por coincidência, de volta, os brasileiros começaram a questionar a situação vivenciada pela corporação. A nova esquadra brasileira ficou pronta em 1910, com seus 34 canhões. Nos meses seguintes, vieram o encouraçado São Paulo (também de grande porte) e o cruzador-ligeiro Bahia.


Na Europa, João Cândido conviveu com marinheiros de todas as partes e conheceu um dos mais politizados e organizados proletários existentes. Também já era grande a indignação da tripulação da Armada Brasileira contra os castigos corporais que sofria constantemente, além do excesso de trabalho e da péssima remuneração. Os oficiais viam os marinheiros simplesmente como escravos. Depois, a própria revolução do nível técnico-científico desses marinheiros que, com novas belonaves, foram transformados em peritos foguistas, mecânicos, eletricistas etc., tiveram seu peso. Iniciaram-se, assim, as primeiras reuniões para se discutir uma possível mudança.


Na Inglaterra, João Cândido mandou pintar, à carvão, o perfil de Nilo Peçanha (1867-1924), chefe de governo, por quem nutria grande simpatia, há algum tempo. Quando o Minas Geraes chegou ao Rio, foi visitado pelo presidente e todo o ministério. O ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, mostrou o quadro ao presidente, que mandou marcar audiência com João Cândido, para comparecer no Palácio do Catete, ocasião em que o marinheiro negro entregou o quadro e, ao mesmo tempo, suplicou ao presidente, em nome de milhares de marinheiros a abolição da chibata na Armada.


Como vimos, embora tal tipo de punição fosse proibida desde a Constituição imperial de 1824, a Marinha só mudaria seus métodos por meio do Decreto n.º 3 de 16 de novembro de 1889, assinado pelo então presidente Marechal Deodoro da Fonseca, com a legislatura da nova República que acabou proibindo a prática. Mas a Lei foi reavivada com o castigo sendo permitido em “campanha correcional” e para casos de “má conduta”. Apesar do enorme poderio bélico e da modernização tecnológica do Brasil pelos mares, o código disciplinar de bordo tinha origem nos tempos coloniais, com o uso de chibata e de outras punições, como prisão solitária, diminuição de comida, degredo e ficar “a ferros” (acorrentado). Todavia, o castigo cruel continuava de fato a ser aplicado, a critério dos oficiais, assim atingindo um contingente de 90% de negros e mulatos – centenas de marujos continuavam a ter seus corpos retalhados pela chibata como no tempo da escravidão. Por ocasião das comemorações do centenário da independência do Chile, os navios Bahia, Tamoio e Timbira foram mandados representar o Brasil, mas foram tantos os castigos aplicados aos marinheiros durante a viagem que aquele conjunto de belonaves ganhou o apelido de Divisão da Morte.


A Revolta da Chibata, sob a liderança do marinheiro negro João Cândido Felisberto, foi um ato de insatisfação ocorrido no início da República devido ao uso da chibata como castigo na armada brasileira, que reivindicava o fim da prática de torturas que remontava aos tempos da escravidão, e dos maus-tratos infligidos aos subalternos pela oficialidade nos navios da Marinha de Guerra Brasileira. Um grande movimento começou em 1910 e contou com a liderança de João Cândido, marinheiro de 1ª classe, da 16ª Companhia da Marinha nacional, logo apelidado de Almirante Negro. Na noite de 21 de novembro de 1910, o marinheiro negro Marcelino Rodrigues de Meneses, no convés do Minas Geraes, nau capitânia da nova esquadra, foi condenado a 250 chibatadas na frente de toda a tripulação – castigo que continuou, apesar do desfalecimento da vítima. Seis dias depois, a Revolta explodiu. A insurreição se desencadeou a bordo do Minas Geraes, mas, em seguida, atingiu outros navios, que tiveram seus comandantes destituídos.


Este fato antecipou a data programada para a insurreição de 25 para 22 de novembro de 1910, justamente na noite que o comandante do navio Minas Geraes, o Capitão João Batista das Neves, dormiria fora do navio, porém retornou mais cedo. Então os marujos tomariam a posse das armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, tendo o controle do navio-mãe. Depois, os marinheiros indignados tomaram dois encouraçados e os apontaram da baía da Guanabara para a cidade. Já eram, a essa altura, cerca de 2.300 marinheiros amotinados, entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910, e que tinham sob seu comando os principais navios de guerra da esquadra: Minas Geraes, São Paulo, Bahia, Timbira e Deodoro, todos apontando os canhões sobre a então capital do Brasil, exigindo o fim dos castigos corporais vigentes na Marinha. O movimento que ficaria conhecido por Revolta da Chibata, trouxe para a cena pública setores oprimidos da população, como agentes históricos transformadores. Além de exigirem o fim da chibata, os rebeldes pediam também, anistia. O governo do marechal Hermes da Fonseca (empossado há uma semana como oitavo Presidente da República no Brasil) e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram rapidamente todas as condições.


No espaço de apenas cinco dias, o marujo gaúcho se transformou de ilustre desconhecido em uma grande celebridade no Brasil. Foi o começo de uma relação ambivalente que perseguiu João Cândido por toda a vida; ele atraía admiração, mas também, e nas mesmas doses, muito ódio.


Após quatro dias de tensão na capital federal, a Revolta terminou em 27 de novembro de 1910, com a anistia aos revoltosos concedida pelo governo. Anistiados, os marinheiros devolveram os navios e largaram as armas. No entanto, no dia seguinte, dia 27, o marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) assinaria do Decreto que permitia a exclusão da Armada de todos os marinheiros que representassem risco, o que era quebra de palavra, uma traição do texto da Lei de Anistia aprovada no dia 25 pelo Senado da República e sancionada pelo presidente da República. Doze dias depois, ocorre outra rebelião, dessa vez envolvendo as guarnições do batalhão naval (na Ilha das Cobras) e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Os combates foram rápidos, porém mais violentos do que na insurreição de novembro, pois o governo partia para esmagar os rebeldes, quando as perdas somaram 24 mortos e 134 feridos.


Os navios com os marujos da Revolta da Chibata, contudo, não tiveram qualquer participação nesse segundo episódio, mas o governo aproveitou do pretexto para fazer uma perseguição mais violenta. O saldo da repressão resultaria em 1.216 expulsões da Marinha, número equivalente a quase metade dos participantes da Revolta da Chibata; 600 pessoas presas, inclusive os líderes do movimento (que sofreram maus-tratos); degredo e trabalho escravo para centenas; e, ainda, um número não contabilizados de assassinatos.


Dezoito líderes foram para a solitária do batalhão Naval Ilha das Cobras no Rio. Apenas João Cândido e um companheiro saíram vivos de lá. Em 18 de abril de 1911, como “doente mental”, ele foi transferido aos Hospício dos Alienados, onde permaneceu por dois meses e, em seguida, foi mais uma vez remetido ao presídio Ilha das Cobra, onde sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Depois, foi internado no Hospital de Alienados, na praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Após 18 meses de detenção, ele e os demais colegas de prisão apresentaram-se ao Conselho de Guerra. Foram defendidos por advogados contratados pela Irmandade da Nossa Senhora do Rosário, que nada cobraram pelo serviço. No dia 1º de dezembro de 1912, foram absolvidos, mas excluídos para sempre da Marinha.


Ao deixar a cadeia, em 30 de dezembro de 1912, João Cândido, mesmo sentindo o gosto da liberdade, estava quebrado – sem dinheiro e enfraquecido. Ele, também teve uma notícia ruim (embora não surpreendente): acabava de ser excluído dos quadros da Marinha de Guerra do Brasil. Foi o último dia em que usou a farda. Passou a morar na casa do carpinteiro Freitas, no bucólico bairro de Laranjeiras, na zona sul carioca, ao mesmo tempo em que passou a trabalhar no serviço pesado do porto. Após, emprega-se no veleiro Antônico para conduzir a embarcação dos portos do sul do país ao Rio de Janeiro como comandante. Trabalhou em diversas atividades laborais na Marinha Mercante e em barcos particulares, porém os oficiais da Marinha pressionavam os patrões e João Cândido era sistematicamente demitido.


Logo depois, se casou com Marieta, na Igreja Nossa Senhora da Glória, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), uma das filhas de Freitas. A relativa calma durou pouco mais de um ano, quando João Cândido foi demitido das atividades na Marinha Mercante. Começou, então, a ser boicotado e conseguiu emprego na descarga de peixes na praça Quinze. Em 1917, sua esposa faleceu e, três anos depois, ele conheceu Maria Dolores, de apenas 18 anos. Foi então que, em 1919, juntando o dinheiro que restava do líder da Revolta da Chibata, comprou o modesto caíque Três Marias para pescar perto dali, no mercado do cais Pharoux (Praça XV). Em condição de pobreza, mas perto dos elementos entre os quais ficavam mais à vontade (cais, navios, marinheiros, o mar) e no meio de sua gente, viveu por quatro décadas, sem salário fixo ou garantias sociais, como os demais pescadores pobres em todo Brasil. A relação entre o casal terminou de maneira trágica: em 1928, ela ateou fogo ao próprio corpo diante das duas filhas mais velhas do casal.


Em 1953, despede-se do navio Minas Geraes, vendido como sucata à Itália. Em seguida, volta à terra natal para receber homenagem, que foi cancelada pela Marinha Brasileira. Contudo, sempre atento à política, João acompanhou com entusiasmo o nascimento do grupo de esquerda Aliança Nacional Libertadora e, anos mais tarde, o surgimento da Ação Integralista Brasileira, seduzido por alguns oficiais integrantes da Marinha, assim como o líder Abdias do Nascimento e o bispo Dom Helder Câmara. Em 1964, foi derrotada a Rebelião dos Marinheiros, na qual Cândido tomou parte. Em 1968, casado com Ana, João Cândido concedeu entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e declarou o seguinte: “E o caso era este. Nós que vinhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha do Brasil ainda o homem tirasse a camisa para ser chicoteado por outro homem.”


Nos anos finais de sua vida, o Almirante Negro recebeu pensão da prefeitura da sua cidade natal. Faleceu, pobre, altivo em relativo anonimato, em uma tarde chuvosa de 06 de dezembro de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, com 89, vítima de um câncer do intestino. Morava em um casebre na baixada fluminense, em uma rua sem saneamento básico ou luz elétrica. Seu enterro, em plena ditadura militar, foi cercado de policiais à paisana. Além de filhos e netos, também compareceram alguns conselheiros da Associação Brasileira de Imprensa; o amigo pastor Luiz Manzon, que encomendou o corpo, o jornalista e amigo Edmar Morel que, emocionado, declarou à beira do túmulo: “Você dignificou a espécie humana. Adeus, João Cândido.” Entretanto, a revolta que liderou entrou para a história como um movimento pós-emancipação, e seu nome permanece motivando aqueles que, cansados dos tratos humilhantes e da falta de respeito, exclusão social e discriminação racial, lutam por um país com condições melhores e com mais direitos para a massa de trabalhadores.


Em 22 de novembro de 1984, quando a Revolta da Chibata completou 74 anos, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro concedeu o título de Cidadão Carioca póstumo ao marinheiro João Cândido, por iniciativa do vereador Jorge Ligeiro. Em 1991, ele recebeu o título póstumo de cidadão honorário de São João do Meriti, no Rio de Janeiro. Em 2002, a Senadora Marina Silva e o ex-deputado Marcos Afonso apresentam um projeto de anistia póstuma a João Cândido e seus companheiros da Revolta da Chibata. Com a mobilização do Movimento Social Negro, em 24 de julho de 2008 foi publicada a Lei Federal n.º 11.756/2008 no Diário Oficial da União, a qual concedeu a anistia póstuma a João Cândido Felisberto e aos demais participantes do movimento, embora tivesse ficado de fora promoções e indenizações.


Com a publicação do livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata, pela editora Irmãos Pongetti, em 1959, a trajetória histórica e heroica de João Cândido ganhou ampla visibilidade. Apesar de todas as adversidades e injustiças sofridas por João Cândido, ele não foi privado de ser consagrado como “Almirante Negro”, herói do povo brasileiro. Entre as homenagens que recebeu, o marujo gaúcho foi ao Rio Grande do Sul, em sua única viagem aérea, para uma sessão promovida pela Sociedade Floresta Aurora, clube social negro e sesquicentenário de Porto Alegre. A pedido do clube nego, o renomado escultor Vasco Prado (1914-1998) modelou em barro o busto original de João Cândido, em 1959. Ele foi fundido em bronze, 40 anos depois, quando em 22 de novembro de 2001, a obra foi assentada e inaugurada no Parque Marinha do Brasil, no bairro Praia de Belas, em Porto Alegre. Em novembro de 2007, uma estátua-monumento de João Cândido de três metros de altura, já consagrado como “Almirante Negro”, foi inaugurada no pátio do Museu da República (Palácio do Catete), voltada para o mar. Ainda não existe um filme de longa-metragem, mas diversos curtas já circularam em salas de exibição sobre sua trajetória heroica: o documentário/ficção João Cândido, um Almirante Negro (1987); João Cândido e a Revolta das Chibatas (2004); o documentário Memórias da Chibata, dentre outros, além de diversas peças teatrais, vários livros e teses universitárias. Sua saga foi tema do famoso samba “O Mestre-sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, em 1975, sobretudo em sua versão original cantada por Elis Regina, que depois sofreu várias modificações impostas pela censura, durante o período da ditadura militar:


O Almirante Negro

(Letra original antes da censura)

João Bosco e Aldir Blanc


Há muito tempo nas águas da Guanabara

O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo marinheiro

A quem a história não esqueceu

Conhecido como almirante negro

Tinha a dignidade de um mestre-sala

E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas

Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos negros

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

De toda a tripulação

Que a exemplo do marinheiro gritava: não!

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!

Glória à farofa, à cachaça, às baleias!

Glórias a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

...não esqueceremos jamais...

Salve o almirante negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

(Mas, salve...)

Salve o Almirante Negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas dos cais!



O Mestre-Sala Dos Mares

(Letra censurada e divulgada)

João Bosco e Aldir Blanca


Há muito tempo nas águas da Guanabara

O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo feiticeiro

A quem a história não esqueceu

Conhecido como navegante negro

Tinha a dignidade de um mestre-sala

E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos santos

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

De todo o pessoal do porão

Que a exemplo do feiticeiro gritava, então:

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias!

Glória à farofa, à cachaça, às baleias!

Glórias a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

...não esqueceremos jamais...

Salve o navegante negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

(Mas, salve...)

Salve o navegante negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

Sobre João Cândido, o Almirante Negro, o escritor e crítico literário Antônio Cândido, no prefácio do livro João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, Teatro Popular, Olho Vivo, declarou o seguinte: “Ninguém mais do que esse lutador negro mostrou aos brasileiros que todos os sacrifícios se justificam no combate pela dignidade básica do homem: o direito inalienável de ser respeitado.” Sendo assim, João Cândido Felisberto está eternizado como um herói brasileiro.



Referências


BARBOSA, Paulo Côrrea; SCHUMAHER, Schuma. Almanaque Histórico – João Cândido – a luta pelos direitos humanos. Brasília: Abravídeo, 2008.


GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia NEGRA. 1. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2021.


LOPES, Vera Neusa; SANGER, Dircenara dos Santos. João Cândido: personalidade da história brasileira. Identidade, Boletim do Grupo de Negros e Negras da EST/IECLB, São Leopoldo, v. 8, jul./dez. 2005.


MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido. Porto Alegre: Edições Tchê, 1984.


MORAES, Paulo Ricardo Moraes. João Cândido – A Revolta da Chibata. 3. ed. atualizada. , Porto Alegre: Editora da Cidade, 2010.


PEREIRA, Lúcia Regina Brito. Africanidades Sul-Rio-Grandenses. 1. ed. João Pessoa: Editora Grafset, 2012. (Coleção A África Está em Nós - História e Cultura Afro-Brasileira).


PESTANA, Maurício. João Cândido – Herói Brasileiro. Centenário da Revolta da Chibata. Brasília: Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial: Governo Federal, 2010.


Atualizado: 14 de out. de 2024



Localizada na antiga Bacia do Mont'Serrat, hoje apenas Bairro Mont'Serrat, a Rua Arthur Rocha imortaliza o dramaturgo e teatrólogo negro Arthur Rodrigues da Rocha. Datada do início do século XX, foi a primeira via a ser ocupada na região, conforme os registros do cronista Sanhudo (1975, p. 111). Referindo-se às origens do Arraial do Mont'Serrat, Sanhudo relata que a primeira leva de moradores teria ocorrido antes de 1910, ano considerado como o início da ocupação do bairro. Em suas palavras:


O bairro, ou melhor, o arraial, começou realmente com a construção da igreja de Nossa Senhora da Auxiliadora, aí pelo ano de 1910 [...]. Mas é verdade que antes disso já havia moradores aí nesses valões da antiga rua Álvaro Chaves, hoje Arthur Rocha (SANHUDO, 1975, p. 111).


No Mapa de Porto Alegre de 1916, primeira vez que a área do Mont’Serrat aparece em um mapa da cidade, a Rua Arthur Rocha já está nomeada, sendo o limite leste da área (ver mapa no verbete “Bacia do Mont'Serrat”).


Nascido na cidade de Rio Grande, Arthur Rodrigues da Rocha ou, simplesmente, Arthur Rocha, como se autodenominava, teve uma vida breve e uma longa produção intelectual. Filho de José Rodrigues da Rocha e Maria das Dores Rocha, uma família pobre, aos 13 anos muda-se para Porto Alegre para estudar. Em sua breve existência (1859-1888) foi dramaturgo, ator, jornalista, contista e ativista político, produzindo 14 peças teatrais – sete delas publicadas em três volumes intitulados Teatro de Arthur Rocha, conforme levantado por Isabel Silveira dos Santos (2009, p. 56), pesquisadora de sua obra.

Redator dos jornais porto-alegrenses O Mosquito (1874), O Colibri (1877) e A Lente (1877), Arthur Rocha compôs o


distinto grupo de intelectuais negros livres do final do século XIX, que tomaram posições radicais na crítica à sociedade da época e que encontraram na imprensa uma saída para debater os assuntos de interesse público, como a abolição da escravidão. (SANTOS, 2010).


Com brilhante e afirmativa trajetória, Arthur Rocha era amplamente reverenciado pela comunidade negra na virada do século XX. Já falecido, tinha suas peças teatrais encenadas nos salões da Sociedade Floresta Aurora, como parte das comemorações de liberdade, ocorridas nas datas de 28 de setembro e 13 de maio, marcando a Lei do Ventre Livre e a Abolição da Escravidão (ZUBARAN, 2008, p. 176). Em setembro de 1904, a Sociedade Floresta Aurora publica, nas páginas do jornal negro O Exemplo, o convite para as comemorações da “gloriosa data de 28 de setembro”. O grandioso marco fora celebrado com “espetáculo de gala” e encenação da peça A Filha da Escrava “primorosa joia literária da lavra do imortal escritor Arthur Rocha”, conforme anunciado no convite. Ainda em atividade, o Floresta Aurora é o mais antigo clube social negro do país, fundado em 1872, em Porto Alegre/RS.


Olhando a partir desse lugar de destaque a que fora alçado, consideramos que a escolha de Arthur Rocha para nomear o logradouro na Bacia do Mont’Serrat não foi aleatória, mas uma decisão consciente relacionada à vontade de marcar a presença negra naquele espaço a partir de um de seus ícones (VIEIRA, 2021).


Figura 1 – Arthur Rodrigues da Rocha (1859-1888), intelectual negro gaúcho

Fonte: SANTOS (2009, p. 49).


Referências


FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006.


SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas da minha cidade. Porto Alegre: Editora Movimento: Instituto Estadual do Livro, 1975. 2 v.


SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as cortinas: Representações étnico-raciais e pedagogias do palco no teatro de Arthur Rocha. 2009. 144 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. Disponível em: https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM103.pdf. Acesso em: 27 mar. 2017.


SANTOS, Isabel Silveira dos. Arthur Rocha: um intelectual negro no “mundo

dos brancos”. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, X., Santa Maria. Anais [...].Santa Maria: UFSM, 2010. p. 1-16. Disponível em: http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279496410_ARQUIVO_ arthurrochaumintelectualnegronomundodosbrancos.pdf. Acesso em: 10 fev. 2015.


VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPUR, 2021. Disponível em: https://anpur.org.br/territorios-negros-em-porto-alegre-rs-1800-1970. Acesso em: 25 jan. 2023.


ZUBARAN, Maria Angélica. Comemorações da liberdade: lugares de memórias negras diaspóricas. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 161-187, jul. 2008. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/anos90/article/viewFile/6743/4045. Acesso em: 6 fev. 2017.

Nossos objetivos na 2ª edição

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Confira as metas da segunda edição do projeto MEMÓRIAS NEGRAS EM VERBETES – Inventário Participativo de Referências Espaciais, Sociais e Simbólicas Projeto realizado com recursos da Lei Complementar nº 195/2022. 

01

+ 50 Verbetes no site

A segunda edição prevê em suas metas a publicação de mais 50 verbetes, totalizando 100 verbetes no blog até o final desta etapa.

03

Mobilização da comunidade

Mobilizar pessoas representativas e instituições do movimento negro porto-alegrense para debater o projeto.

02

Audiodescrição dos conteúdos do site

Nosso projeto agora terá o recursos de audiodescrição, tornando a pesquisa acessível a mais pessoas.

04

Audiolivro

Montar Audiolivro unindo os episódios do Desapaga POA e do Memórias Negras em Verbetes.

Reportagens

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Verbetes em destaque

O Príncipe Custódio, figura histórica envolta em mistério, faleceu em Porto Alegre em 1935 e nasceu na África no século XIX. Duas narrativas principais disputam sua origem: uma o vincula à realeza do Benin, atribuindo-lhe importância no batuque e no assentamento do Bará do Mercado, enquanto outra o identifica como filho de um comerciante de escravos africano, chegando a Porto Alegre após disputas familiares. Custódio se destacou na cidade tanto por sua participação nas corridas de cavalos quanto por sua liderança religiosa, sendo reconhecido por sua influência nos cultos africanos e por seu papel de mediador entre a população negra e a elite. Seu legado segue relevante para o movimento negro e para as discussões políticas e religiosas no Rio Grande do Sul.

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Príncipe Custódio

Lupicínio Rodrigues, nascido em Porto Alegre em 1914, destacou-se como um dos maiores compositores da música brasileira, conhecido como o mestre da "dor de cotovelo". Desde cedo, transitou pela boemia e pela música, conciliando sua trajetória com uma breve passagem pelo exército e uma vida marcada por empreendedorismo e engajamento social. Suas composições, como Se Acaso Você Chegasse e Nervos de Aço , tornaram-se clássicos, interpretados por grandes nomes da música. Gremista fervoroso, compôs o hino do Grêmio e participou ativamente da cena cultural e política, chegando a disputar uma eleição. Mesmo reconhecidos nacionalmente, episódios de racismo, o que reforçou seu papel na luta pelos direitos da comunidade negra. Faleceu em 1974, deixando um legado imortal na música popular brasileira.

Lupicínio Rodrigues

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Tambor – Museu de Percurso do Negro

O Tambor Amarelo, instalado na Praça Brigadeiro Sampaio em 2010, tornou-se um símbolo da presença e trajetória do negro em Porto Alegre, sendo um marco do Museu de Percurso do Negro. Concebido por um coletivo de artistas e griôs, com base em uma pesquisa antropológica de Iosvaldyr Bittencourt, a obra foi desenvolvida em um processo coletivo inspirado em valores civilizatórios africanos. Além de resgatar a memória negra no antigo Largo da Forca, o tambor representa a diversidade cultural afro-brasileira e denuncia a pouca representatividade da cultura africana nos monumentos da capital gaúcha. Hoje, a escultura fortalece a identidade negra e ressoa com imigrantes africanos e latino-americanos que chegam ao Rio Grande do Sul. O trabalho dos artistas e griôs envolvidos reforça a importância da arte coletiva e da ancestralidade na construção da memória urbana. Mais do que um monumento, o Tambor Amarelo é um convite ao reconhecimento e à valorização da história negra na cidade.

Pelópidas Thebano Ondemar Parente (1934-2022) foi um renomado artista plástico, desenhista e figurinista de Porto Alegre, destacando-se na arte afrocentrada e no carnaval da cidade. Servidor público por décadas, contribuiu com projetos arquitetônicos e participou da concepção do Aeromóvel. Suas obras abordam a diáspora africana e a identidade negra, refletindo sobre a influência cultural afro-brasileira. Foi um dos idealizadores da Frente Negra de Arte e autor de marcos visuais do Museu de Percurso do Negro, como o Tambor Amarelo. Seu legado é reconhecido em diversas exposições e premiações, consolidando-o como uma referência na arte negra no Rio Grande do Sul.

Pelópidas Thebano

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Wilson Tibério (1916-2005), conhecido como Tibério, foi um artista afro-brasileiro engajado no debate antirracista e colonialista do século XX. Natural de Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou na Escola Nacional de Belas Artes, destacando-se por sua arte voltada à vivência da população negra. Em 1947, emigrou para a França, viajando por diversos países e se aproximando do movimento Négritude. Sua produção artística denunciava o colonialismo e exaltava a diáspora africana, com obras que hoje integram acervos como a Pinacoteca Ruben Berta, a UFRGS e o Museu Afro Brasil.

Wilson Tibério

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A Ilhota era uma pequena porção de terra na Cidade Baixa, Porto Alegre, formada pelo meandro do Arroio Dilúvio e delimitada pelas atuais avenidas Getúlio Vargas e Érico Veríssimo. Surgida em 1905, tornou-se um núcleo habitado por uma população majoritariamente negra e de baixa renda, conhecida por sua forte tradição boêmia e carnavalesca, sendo berço do samba e lar de Lupicínio Rodrigues. Com a canalização do Arroio Dilúvio após a enchente de 1941, a área foi alvo de interesse imobiliário e sofreu uma brutal remoção populacional no final da década de 1960, deslocando muitos moradores para a Restinga, então uma periferia sem infraestrutura adequada.

Ilhota

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Durante o século XIX, os Campos da Redenção, inicialmente uma grande várzea alagadiça fora da cidade de Porto Alegre, foram um importante local para celebrações culturais e religiosas da população negra, como o Candombe da Mãe Rita e outros batuques, realizados com tambores e danças. Esses festejos, mencionados por cronistas da cidade, ocorreram especialmente na área ao redor da atual rua Avaí e nas proximidades da Capelinha do Bom Fim. Em 1884, a Várzea foi oficialmente renomeada para Campos da Redenção para comemorar a libertação dos escravizados em Porto Alegre, embora a abolição tenha sido limitada e parcial, com muitos negros ainda vivendo como libertos ou escravizados. A nova denominação refletia o legado da resistência e presença cultural dos negros na cidade.

Campos da Redenção

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Dario de Bittencourt, nascido em 1901, foi um importante advogado, educador e ativista negro, com uma trajetória marcada pela luta contra o preconceito racial e pela valorização das tradições culturais negras. Criado por seu avô após a morte do pai, Dario teve uma educação privilegiada, estudando em instituições renomadas e se graduando em Direito pela Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre. Ao longo de sua vida, foi membro ativo de diversas organizações negras, como a Sociedade Beneficente Floresta Aurora e o Grêmio Náutico Marcílio Dias, e participou ativamente do jornal O Exemplo, que combatia o racismo. Além disso, Dario se envolveu com religiões de matriz africana, defendendo a aceitação do Candomblé como religião legítima. Em sua carreira acadêmica, foi professor catedrático de Direito Internacional Privado na Universidade do Rio Grande do Sul e se aposentou em 1957, mantendo seu compromisso com a luta contra a discriminação racial até sua morte.

Dario de Bittencourt

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Em 2 de julho de 1949, a Folha da Tarde fez um convite aberto aos homens de cor de Porto Alegre para a fundação de um clube náutico, inicialmente chamado José do Patrocínio, mas que recebeu o nome de Marcílio Dias, em homenagem ao intelectual negro. O Clube foi criado com o objetivo de proporcionar aos jovens negros o acesso a esportes como remo e natação, atividades que eram negadas pelos clubes brancos da cidade. Fundado em 4 de julho de 1949, o clube teve como principais articuladores figuras como João Nunes de Oliveira e Armando Hipólito dos Santos. Em 1950, abriu oficialmente sua sede na Avenida Praia de Belas, sendo um ponto de encontro para festas e eventos importantes da comunidade negra local. Na década de 1960, o clube lançou o jornal Ébano, e embora tenha enfrentado dificuldades com sua sede, incluindo a construção de um ginásio destruído por ventos fortes, o clube seguiu promovendo atividades até seu fechamento na década de 1970.

Clube Náutico Marcílio Dias

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A área do atual bairro Mont'Serrat, até meados do século XX e talvez até as décadas de 1980/90, era conhecida como a Bacia do Mont'Serrat, um território predominantemente negro com registros desde o início do século XX. O bairro teve sua origem marcada pela presença de famílias negras, com destaque para a Rua Arthur Rocha, nomeada em homenagem ao dramaturgo negro Arthur Rodrigues da Rocha. A Bacia do Mont'Serrat foi uma área de forte religiosidade, com várias casas de batuque e terreiros de matriz africana, e se tornou um ponto de encontro de trabalho e sociabilidade para as famílias negras da região, com destaque para atividades como a lavagem de roupas e o trabalho de costureiras. Além disso, o bairro foi berço de tradições culturais como blocos de carnaval e piqueniques dominicais. No entanto, com o processo de urbanização e transformação social, o antigo território negro se perdeu, embora ainda resista uma presença negra na região.

Bacia do Mont'Serrat

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